A relação entre a sociedade quaker e a anarquia pode parecer, à primeira vista, improvável ou até descabida. Um movimento espiritual com as suas origens na tradição cristã e uma filosofia política radical. No entanto, basta um olhar mais atento para compreender uma afinidade profunda. Ambos os universos partilham um ideal de revolução – não me refiro aqui a uma revolução violenta e opressiva, mas a uma transformação radical e profunda das relações sociais e espirituais, uma revolução que se faz no quotidiano e em pequenas acções, numa prática colectiva. O que ambos defendem é uma utopia palpável e possível, que nasce da acção comunitária, da horizontalidade e da constante luta por um novo mundo.
A sociedade quaker, ou sociedade dos amigos, nascida no século XVII, rejeita dogmas em favor de uma experiência directa da verdade. Esta abertura à autonomia do indivíduo pode ressoar fortemente com os princípios anarquistas, que desconfiam das instituições e do poder centralizado. Emma Goldman sublinhou essa ligação ao afirmar que «a verdadeira emancipação não começa nas mesas de voto nem nos tribunais. Começa na alma da mulher.»1 Se para os quakers o espírito divino habita em todos, para os anarquistas, a liberdade floresce onde há autonomia e responsabilidade colectiva.
A horizontalidade é outro ponto de convergência. Os quakers organizam-se em reuniões onde todos têm voz, onde não há padres nem líderes espirituais que monopolizem a verdade. Esta estrutura anti-hierárquica antecipa a auto-organização libertária que a communard anarquista Louise Michel via como a chave para a liberdade, acreditando num governo horizontal, «do povo e pelo povo». Os anarquistas, assim como os quakers, acreditam que a autoridade imposta corrompe e que só através da igualdade e do respeito por todos se pode construir uma comunidade justa.
No quotidiano, o apoio mútuo é o que une ambas as tradições. A fé dos quakers não é passiva: manifesta-se em actos de desobediência civil, de entre-ajuda, de resistência à guerra e à exploração. Muitos estiveram na linha da frente do abolicionismo e da luta pela justiça social. O teórico anarquista Colin Ward defendia que «far from being a speculative vision of a future society, it is a description of a mode of human experience of everyday life, which operates side-by-side with, and in spite of, the dominant authoritarian trends of our society.»2 Para Ward, o anarquismo não era apenas um projecto revolucionário de futuro, mas algo que emergia no presente, através de organizações voluntárias, cooperativas, ocupações e práticas de apoio mútuo.
O anarquismo vê na intervenção activa o caminho para a revolução: não se espera pelo amanhã, constrói-se o mundo novo hoje, nas relações que cultivamos, nos espaços que libertamos, nas práticas que desenvolvemos. Pequenos gestos, como a partilha de recursos, a auto-gestão de um espaço ou a decisão de desafiar uma injustiça quotidiana, tornam-se assim sementes de transformação. É na prática do dia-a-dia que a revolução se constrói: na forma como tratamos os outros, nesse compromisso, na coragem de dizer não ao que oprime.
Para muitos quakers, a fé não está vinculada a uma religião institucionalizada, mas a uma experiência pessoal e comunitária de verdade, justiça e solidariedade. Historicamente, eles resistiram à autoridade eclesiástica e recusaram-se a submeter-se a estruturas religiosas centralizadas. Esta distância das instituições tradicionais aproxima-os do anarquismo, que também rejeita a mediação do poder sobre a experiência individual e colectiva. Para muitos quakers contemporâneos, ser quaker não significa pertencer a uma religião, mas sim partilhar uma ética de simplicidade, integridade e resistência à imposição de estruturas hierárquicas. A espiritualidade, nesse sentido, torna-se uma prática vivida diariamente, sem necessidade de dogmas ou intermediação institucional.
John Woolman, um quaker do século XVIII, exemplificou essa postura ao dedicar a sua vida à luta contra a escravidão e à promoção da justiça económica. Através das suas intervenções e da recusa em participar em sistemas opressivos, Woolman antecipou práticas que hoje consideramos essenciais tanto no anarquismo quanto na tradição quaker.
A revolução, para quakers e anarquistas, não é um evento distante, mas uma prática diária. Uma comunidade que se rege por princípios de igualdade, solidariedade e autonomia não espera que o poder caia para agir – ela já vive, no presente, a transformação que deseja ver no futuro. Aqui, a fé não é um dogma, mas um compromisso com o outro, com o possível, com a criação incessante de novas formas de viver. A revolução não é um grito, é um eco que se espalha em cada gesto, em cada escolha, na esperança teimosa de que o mundo pode ser diferente.
E é aqui que a utopia se torna essencial. Não como um horizonte inalcançável, mas como uma bússola que orienta cada acção no presente. Colin Ward via a utopia não como um sonho irrealizável, mas como um processo contínuo de experimentação, adaptação e resistência. Para os quakers e os anarquistas, a utopia não é apenas uma visão de um futuro ideal, mas uma prática concreta no quotidiano. Está nos gestos de solidariedade, nas redes de apoio mútuo, na decisão de desafiar cada pequena opressão. Como dizia Goldman, «Se não puder dançar, esta não é a minha revolução»3 – a utopia vive onde há alegria, onde há comunidade, onde há resistência, onde há a coragem de imaginar e construir um mundo radicalmente diferente, aqui e agora.
*A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.