I.
Globalização, tecno-feudalismo, neoliberalismo. São todas palavras engraçadas que, não obstante as dissemelhanças entre si, tentaram conceptualizar o período pós-Fordista. A narrativização, quasi-melancólica em alguns casos, costuma focar-se nos efeitos da desregulação dos mercados laborais, da desindustrialização dos países do Centro Imperial, da crescente financeirização da economia global. O dilúvio parece ter chegado à terra e não há quemlhe faça frente. Por norma, esta teorização faz-se acompanhar por uma série de considerações para uma possível (mas nem sempre eventual) prática política. Há que lutar contra a perda de força do proletariado, sem nunca questionar as condições intrínsecas ao mesmo que o fragmentam e fragmentaram; há que lutar contra a perda da soberania dos Estados, sem nunca questionar a utilidade da própria categoria enquanto base de análise; há que lutar contra a aparente subsunção da política à economia, sem nunca questionar se em algum momento histórico do capitalismo a política teve autonomia relativa. Por detrás de tanta incerteza conceptual, de tantos desafios que se apresentam à própria compreensão do fenómeno, encontramos as mesmas certezas de sempre. O horizonte político e, por consequência, da história castram-se a priori porque se transmutam condições históricas para o campo da ontologia, do estanque e inalterável. Por outras palavras, confunde-se a história com a realidade, e a realidade com a história.
A pequenez deste horizonte denota-se nas reações dos seus defensores perante a sugestão de que esta crise não é uma crise política, mas sim uma crise da política. Não é uma crise económica que começou em 2008, nem nos anos 70, mas sim uma crise da economia. Não é uma crise das organizações dos trabalhadores, mas sim uma crise do trabalhador. Talvez um dos efeitos mais perversos será a paralisia da crítica ou, melhor, a crítica superficial entre as várias tendências de esquerda que estes termos refletem. Recorde-se como a crítica mais comum atribuída à esquerda portuguesa – por outras pessoas de esquerda, claro – é a sua falta de unidade, quando é nesta falta de horizonte político, nesta constante política de contenção de danos, nesta ontologia auto-imposta que esta mesma esquerda encontra o seu laço unitário mais fundamental.
Uma das tendências mais pervasivas que este tipo de postura produz é o que Stuart Hall chamou de «marxismo enquanto teoria do óbvio», onde todas estas complicações, todas as mudanças a que o capitalismo é sujeito, todos os novos obstáculos que se erguem, são recebidos com as análises pré-feitas que se reduzem a uma paródia de metodologia prontas a aplicar.
E assim, perante esta obsessão em personalizar a crítica numa mega-conspiração da alta burguesia – afinal, a crítica tem sempre de ser reconduzida aos seus culpados – o sistema social, a totalidade, o capital, o que lhe quiserem chamar, passa pelos pingos da chuva e retém o seu estatuto enquanto verdadeiro condutor do colapso impercetível.
II.
Gostava de poder dar uma definição da palavra «ontologizar», seguindo o espírito deste grupo de precisar conceitos. Contudo, parece que o dicionário português não reconhece esta palavra enquanto digna de tal definição, algo que até poderia indicar a peculiaridade desta palavra. A ontologia, um ramo especial da filosofia que comumente é contrastado com a epistemologia, refere-se ao campo da filosofia que procura desenvolver teorias do ser. A maneira mais simples de explicar o que é que, na prática, isto quer dizer é através da distinção do próprio termo, ser, e aquilo a que inevitavelmente se refere, seres. Todos os dias, espero eu, vocês encontram vários seres – vamos assumir seres humanos, para facilitar a analogia. Alguns terão cabelos vermelhos, castanhos; outros terão olhos azuis, verdes; outros serão mais ou menos altos. Em contraste com estas expressões individuais da categoria ser encontramos a própria categoria, o que supostamente representa uma essência independente das individuações que possamos encontrar. Esta essência é precisamente o que o campo da ontologia procura apreender. Assim sendo, ontologia refere-se à essência do ser, à essência das coisas (Adorno, 2019: 8-9). Aliás, a própria palavra «ontologia» foi progressivamente sendo utilizada de modo pejorativo pelos seus adversários, como se significasse «algo que é natural, eterno, imutável», sentido no qual eu me revejo no meu uso da palavra «ontologizar», ou seja, um exercício subtil de, ao tratar algo de acordo com as suas características fundamentais, transformar esse próprio objeto em algo «natural». Claro que esta não é a maneira mais simpática de falar sobre ontologia, mas não estou particularmente preocupado em ser rigoroso nesta parte do texto.
O capitalismo, enquanto forma social de produção, fez-se acompanhar historicamente por uma igualmente social constelação de ideias. Fale-se de modernidade, Iluminismo – aqui, o termo utilizado no Brasil, Esclarecimento, reflete melhor a ideia por detrás deste movimento – ou da filosofia burguesa, esta constelação tem sido uma espécie de prisão conceptual porque, entre outras coisas, tem necessariamente de se «ontologizar». O que aos olhos de hoje pode parecer natural ou habitual, por exemplo, a ideia de propriedade privada enquanto direito natural do ser humano, só alcançou esse estatuto através de um longo processo de justificação autorreferencial da modernidade. A história passa a ser interpretada como um processo linear, como progresso, como a culminação da racionalidade humana que coletivamente decide os seus destinos. Já não faz sentido à racionalidade moderna – aqui no sentido social do termo, no que é possível ser pensado – pensar em Estado, Dinheiro, Trabalho, sem pensar nos outros; sendo assim, e até devido à própria conceção iluminista da racionalidade, a modernidade capitalista apresenta-se necessariamente como um processo racional: enfim, a história é um caminho em direção à modernidade. Este processo de «ontologização» de que falo pode ser demonstrado pela história, ou pelo menos intuído, como autores da Escola dos Annales defenderam, sendo o caso mais útil para o meu caso Jacques Le Goff (2013).
Se Le Goff utiliza o conceito de dinheiro e de economia para argumentar que não há vestígio de tal coisa, como nós as compreendemos, na Idade Média, neste texto quero falar da categoria de trabalho como nós a conhecemos atualmente. Não estou aqui a falar de individuações de noções de trabalho – se é assalariado, independente ou até mesmo escravo – mas sim trabalho em si, sem mais qualificadores, essa ideia quasi-ontológica. Pode-se dizer que o trabalho é uma parte constitutiva da natureza humana, que é o que distingue o ser humano dos restantes animais – aliás, nisto, aquele senhor do café que se queixa das pessoas que não querem trabalhar, está mais perto de um filósofo do Iluminismo do que se possa parecer. A base da sociedade humana é o trabalho, só assim é que a nossa sociedade consegue produzir o que necessita para se reproduzir e sobreviver. O «trabalhinho da Silva», nas palavras de José Mário Branco, é algo inescapável e é tomado como uma garantia evidente em toda a filosofia Iluminista. O trabalho é de tal forma natural que ele define em grande parte a auto-estima das pessoas. Mesmo em conversas em seios marxistas que, pelo menos na teoria, defendem uma transformação radical do modo de produção vigente, há sempre uma preocupação em falar em trabalhos essenciais, ou até mesmo em trabalhos produtivos.
Agora, será que isto se sustenta após um escrutínio histórico? Será que isto foi sempre assim? Será que o trabalho é mesmo algo natural e, mais importante ainda, foi interpretado historicamente enquanto tal?
III.
É impossível resumir em poucas páginas o impacto das mudanças radicais que ocorreram nas sociedades europeias devido à rápida industrialização do século XIX. No que me diz respeito, e a este texto, importa apenas dizer que estas mudanças tiveram um caráter de tal forma existencial que a economia política clássica (desde Adam Smith a John Stuart Mill) se entendia enquanto uma teoria da sociedade, e não apenas uma teoria económica como encontramos hoje nas nossas universidades. Estavam em causa várias coisas, é certo, mas uma das preocupações centrais era a de tentar compreender o capitalismo, tentar compreender o funcionamento deste novo sistema social.
Abstendo-me de resumir este período em toda a sua importância, quero agora tentar fazer uma espécie de compasso histórico e traçar o caminho que começa com Adam Smith e que acaba numa das três mais importantes descobertas na história das ciências sociais, sendo elas o inconsciente de Freud, a historicidade da moral humana e, aquela que me interessa aqui, a teoria do valor de Marx.
Smith foi a primeira pessoa na história do pensamento iluminista a propor uma teoria de classes sistemática para analisar o capitalismo. Munido da sua filosofia da história materialista, onde a história era interpretada como o progresso da divisão do trabalho social, capacidade produtiva e modo de subsistência dos seres humanos – cuja originalidade é muitas vezes erroneamente atribuída a Marx – tentou sistematizar o capitalismo enquanto um sistema social de produção onde três classes fundamentais são formadas: os proprietários de terra, os proprietários de capital (ou stock como lhe chamava) e os assalariados. Esta análise parte fundamentalmente da ideia de que para produzir uma mercadoria é necessária a cooperação entre três «fatores de produção», ou seja: terra, trabalho e capital. A cada fator de produção corresponde uma forma de rendimento, respetivamente, rendas, salários e lucros e é daqui, da forma como um indivíduo subsiste, que Smith deduz a existência de três grandes classes sociais no capitalismo. Ainda assim, apesar de toda a filosofia da história inerente a esta ideia, Smith não consegue justificar a existência destes fatores de produção, para lá da propensão natural – e ontológica – do ser humano para a troca, para o trabalho. O momento histórico, onde uma série de indivíduos «surgem» com este stock acumulado, nunca é problematizado em Smith. Afinal, sendo um verdadeiro pensador do Iluminismo, interpreta a história como uma evolução natural que culmina nas instituições modernas. As incongruências do sistema de Smith não são marginais sendo que, se a relação entre estas três formas de rendimento é admitida, o aumento do valor de um deles implicará a diminuição dos outros dois, algo que Smith nunca admitiu explicitamente. Smith não precisou de o admitir para a realidade da emergência do proletariado enquanto agente político, em tempo oportuno, comprovar este simples facto do capitalismo (Clarke, 1991: 17-27).
Se a classe operária tudo produz, à classe operária tudo pertence. Ideia parva, mas simples e fácil o suficiente para propagar enquanto slogan reivindicativo. Ideia que, tantas vezes, é erroneamente atribuída a Marx, mais facilmente poderia ser encontrada nos trabalhos de David Ricardo. Descendente de Judeus expulsos por Portugal e o grande discípulo intelectual de A. Smith, caiu-lhe nos ombros a missão de complementar o sistema da economia política clássica que Smith tinha começado. A teoria do valor-trabalho, que postula que o preço (e não valor) de uma mercadoria corresponde ao tempo de trabalho necessário para a produzir é retomada e desenvolvida ao máximo por Ricardo. Esta noção surge ainda em Smith, se bem que não tinha uma função explicativa como é o caso em Ricardo.
Para Ricardo, esta teoria era fundamental. Em primeiro lugar, porque as grandes incongruências da teoria sistémica de Smith deviam-se à ausência de uma teoria de valor – ou seja, uma teoria que conseguisse sistematizar as relações entre as classes que Smith postulou; em segundo lugar, devido ao seu contexto político, Ricardo estava preocupado em demonstrar que havia uma relação inversa entre lucros e salários, ideia que defendeu enquanto crítica contra as Corn Laws – uma manutenção artificial do preço alto de cereais através de tarifas de importação – e não como demonstração de exploração dos trabalhadores no capitalismo (Clarke, 1991: 31-37). Apesar dos usos ora mais radicais ora mais conservadores de que esta teoria foi alvo, a teoria do valor-trabalho encontrou o seu desenvolvimento mais sofisticado em Ricardo. Se o preço de uma mercadoria corresponde ao tempo de trabalho necessário para a produzir, uma conclusão quase natural é a de que: se a classe operária tudo produz, a ela tudo pertence.
É neste ponto da nossa genealogia que este processo de «ontologização»como lhe chamei, entra Marx. Tal como em Smith, a existência de capital, de propriedade privada da terra, e trabalho assalariado para Ricardo eram dados adquiridos, uma característica fundamental da vida humana e não de um período histórico específico.
IV
Não é muito fácil resumir o significado dos primeiros três capítulos do Capital em Marx e, aliás, este ímpeto para a simplificação leva frequentemente a equívocos e mistificações. Ainda assim, não creio que seja impossível fazê-lo sem incorrer nesse caminho. Há quem veja nesta primeira parte do Capital uma demonstração da exploração inerente ao capitalismo, através da noção da mais-valia. Há quem veja como uma parte que, por ser de tão difícil compreensão, deva ser posta de parte pelos novos leitores. Há quem veja como a grande chave do capitalismo, tentando reduzir o capitalismo à forma-mercadoria ou à forma-valor. Gostaria de propor que a teoria do valor em Marx é, em última instância, uma teoria sobre a modernidade e as suas formas sociais fundamentais – até aqui, nada de particularmente original. Apesar de a discussão ser quase sempre conduzida em termos meramente económicos, o objeto de estudo está longe de ser a «economia». A teoria do valor em Marx é, em última instância, uma crítica do trabalho.
Num manuscrito não publicado em vida, Marx (1904: 292-305) explicita em que é que o seu modo de operar difere do da economia política clássica, acusando autores como Smith e Ricardo de tratarem a existência da produção material como uma verdade eterna – recordemos o sentido (menos simpático, é verdade) com que usei «ontologizar» – limitando-se a historicizar o modo de distribuição, ou seja, a existência do mercado e a existência de classes sociais. Esta centralidade das disputas na distribuição continua a prevalecer hoje em tantas e tantas correntes de marxismo e outras esquerdas adjacentes, por exemplo no oxímoro da «economia política socialista» ou nas divisões conceptuais entre o «grande» e o «pequeno» capital.
As categorias que Marx utiliza para ilustrar este problema são, precisamente, o trabalho e o dinheiro. O dinheiro, que surge enquanto categoria dominante e determinante na modernidade, mesmo tendo existido antes do advento do capitalismo, nem sempre surge em sistemas económicos complexos e tem uma função fundamentalmente distinta daquela que tem hoje. O trabalho parece ser uma categoria simples: a «mais simples e antiga relação» através da qual os seres humanos produzem. Ainda assim, na forma como ele era tratado na economia política – e nas ciências sociais contemporâneas – como trabalho enquanto tal, sem mais qualificações, esta mera abstração surge enquanto uma categoria trans-histórica e ontológica. O nível de abstração trai a sua historicidade, enquanto um reflexo da indiferença perante o conteúdo do trabalho – seja agrícola, industrial, serviços, etc. –, onde nenhuma dessas formas é propriamente predominante: trai um período histórico onde o «trabalho (...) se torna o meio de criar riqueza no geral», onde o trabalho «atinge uma verdade prática enquanto abstracção» (Marx, 1904: 297-299).
O grande fio condutor da crítica à economia política nesta obra é precisamente a conceção que estes autores têm sobre o trabalho, que «limita as suas investigações exclusivamente à determinação quantitativa do valor.» Bastará aqui recordar a principal crítica de Marx a Ricardo, desenvolvida em manuscritos não publicados em vida (Marx, 1971), embora seja mencionada numa nota de rodapé do Capital (Marx, 1976: 173-174), mas que resume bem a necessidade desta distinção para Marx. Parafraseando: é secundário saber se os preços das mercadorias são reflexo do tempo de trabalho. O que importa saber, a grande questão, o grande mistério que une Smith e Ricardo num silêncio ensurdecedor, é por que raio é que os produtos do trabalho humano têm necessariamente de ser representados como valores e tomar a forma de objetos? Porque é que uma atividade humana, sensível e prática, toma a forma de um objeto? É o facto de Ricardo nunca colocar esta questão, este aspeto qualitativo do valor das mercadorias, que tanto frustra Marx (1971: 129-131).
V.
Marx começa o Capital com uma análise da forma-valor, ou seja, o mecanismo social através do qual o valor das mercadorias é determinado. Comecemos com uma mercadoria: à primeira vista, uma mercadoria aparenta ter tanto um valor-de-uso como um valor-de-troca, ou seja, tem um uso direto e um uso para troca. Um casaco é algo que tanto é diretamente útil para o consumidor como é utilizado pelo seu produtor para obter outras mercadorias. Se agora pegarmos neste casaco e o quisermos trocar por outra mercadoria, por exemplo, um par de sapatos – assumindo que têm o mesmo valor-de-troca, para facilitar – chegamos à equação simples, uma mera relação de valor: 1 casaco = 1 par de sapatos1. Num contexto capitalista, no entanto, esta relação de valor não é circunscrita a estas duas mercadorias. Qualquer outra mercadoria pode tomar o lugar do par de sapatos, porque esta equação serve para representar o valor do meu casaco e trocá-lo: 1 casaco = 3 camisolas = 20 quilos de batatas = 2 garrafas de vinho.
Esta comensurabilidade entre todas as mercadorias revela-nos desde já que estão a ser comparadas quantitativamente e, assim sendo, têm necessariamente de ter alguma coisa comum entre elas. Antes de percebermos qual é esta substância comum, olhemos para esta equação mais uma vez.
O que é que está a ser dito, ou melhor, representado nesta equação entre as várias mercadorias? Repare-se que, ao início, queríamos meramente determinar o valor do meu casaco. Repare-se também que para o fazer podemos usar qualquer outra mercadoria. A relação subtil que aqui nos surge sob forma de equação é a que se estabelece entre todas as mercadorias: o seu valor só pode ser representado através de outra mercadoria, o seu valor só pode ser representado sob a forma de um objeto. As mercadorias utilizadas para determinar o valor do casaco veem o seu valor-de-uso a «desaparecer» da equação, visto que apenas contam enquanto valores-de-troca. Era precisamente por ignorarem este caráter qualitativo, a equalização socialmente determinada entre todas as mercadorias e todas as formas de trabalho, que Marx criticava Smith e Ricardo. Se olharmos para a equação mais uma vez, não vemos nada senão uma massa de trabalho objetificado, uma atividade humana que se faz representar sob a forma de um objeto.
Olhemos agora para esta massa de trabalho, retomando o nosso casaco. Para produzir um casaco, alguém tem de o compor, ou seja, alguém tem de perder tempo de trabalho a pegar nas matérias primas originais e a produzir o casaco. Chamemos a isto «trabalho concreto», para facilitar. Este trabalho concreto é específico a cada mercadoria, tal como o valor-de-uso das mesmas é específico aos consumidores. No entanto, tal como acontece com os valores-de-troca das mercadorias que são utilizadas para determinar o valor do meu casaco, este trabalho concreto desaparece da equação: este trabalho concreto serve única e exclusivamente para representar trabalho abstrato, serve apenas enquanto objeto produzido por trabalho no abstrato, sem mais qualificações. Quando olhamos para o que resta dos trabalhos concretos que foram necessários para produzir cada uma daquelas mercadorias, não vemos nada senão esta forma «fantasmagórica», este caráter enigmático do produto do trabalho, que nos mostra a especificidade histórica do capitalismo: o trabalho enquanto atividade só pode ser representado sob a forma de um objeto e, por consequência, as relações que os seres humanos estabelecem entre os produtos do seu trabalho só podem aparecer sob a forma de relações entre objetos. É esta a loucura do trabalho abstrato, a de que as relações produtivas entre seres humanos tomam a forma de relações entre objetos.
VI.
O que acabei de descrever no ponto acima é o que Marx desenvolve no subcapítulo do «Fetichismo da Mercadoria» no Capital. É aí que Marx descreve este fetichismo como inseparável da produção de mercadorias e enquanto um reflexo de um período histórico onde o processo de produção domina o ser humano, e não o contrário. É daqui que Marx haveria de formular pensamentos tão obscuros e estranhos para tantos marxistas, como a noção de que o capital é um sujeito autómato (1976: 255-256), ou que as relações de produção no capitalismo têm necessariamente uma aparência sobrenatural (1976: 92, 991, 1017) ou ainda que capitalistas e trabalhadores são meros portadores destas relações que se impõem sobre o ser humano (1973: 210-212; 230).
Contudo, este trabalho abstrato tem sido alvo das mais espúrias interpretações. Algo que une o marxismo e a economia neoclássica – salvo muito raras exceções – é precisamente a confusão entre a teoria do valor-trabalho de Smith e Ricardo com a teoria do valor em Marx. Há até quem queira sugerir que a grande distinção entre estas duas é a adição da palavra «social» por parte de Marx, quando postulava que o valor de uma mercadoria corresponde ao tempo-trabalho socialmente necessário para a produzir [por exemplo, David Harvey (2010)]. É particularmente tosco que, até hoje, tenham sido raros os marxistas a focar devidamente a centralidade da distinção entre valor e valor de troca na teoria de valor em Marx. Isto, no que diz respeito a este texto, é relevante porque esta distinção, longe de ser uma mera tecnicidade económica, é um poderoso argumento histórico contra a visão ontológica do trabalho. É particularmente tosco também visto que, na própria conceção de Marx, esta tenha sido a sua maior descoberta.
Assim sendo, a interpretação mais popular deste «trabalho abstrato» em Marx é uma interpretação positiva, ou seja, a de que se trata de uma relação milenar que os seres humanos estabelecem entre si desde o primeiro momento em que estabelecem relações produtivas e, portanto, tem sido interpretado enquanto uma categoria ontológica.
VII.
Retomando a discussão com que comecei este texto, acho que é relevante abrir a questão se o fenómeno que agora nos confronta – uma crise generalizada dos sindicatos, uma perda de soberania dos Estados perante um aparato económico globalizado, uma quase total financeirização das economias dominantes, desemprego e inflação crónicos, etc. – se tudo isto se configura enquanto uma crise do capitalismo. Será que estamos perante uma crise ou uma rutura?
As interpretações mais comuns deste período histórico tendem a focar-se no seu caráter político: essencialmente, a desindustrialização relativa na Europa e na América deveu-se a uma escolha política por parte das classes dominantes. Uma vez que o «pacto» do Fordismo representava um obstáculo ao aumento dos lucros, rapidamente se procuraram novos mercados onde a legislação laboral não era tão rígida, onde a força de trabalho era mais barata. Em simultâneo, retiraram-se as amarras ao «capital financeiro» que rapidamente se transformou dominante no mundo ocidental. As soluções, normalmente apresentadas, são um conjunto de políticas de regulação do capital financeiro, de combate à fuga aos impostos e do retorno da legislação laboral que protegia os trabalhadores, sempre dentro do limite da economia capitalista. Este apelo ao retorno do Keynesianismo – ainda que subtil e implícito – revela bem o quanto até as correntes pretensamente críticas do capitalismo são subsumidas à ontologia da modernidade: a positivação e afirmação acrítica do valor, do trabalho abstrato, e essencialmente da metafísica da história do Iluminismo.
Estas transformações não são entendidas na sua essência, tomando exclusivamente uma interpretação positiva do trabalho abstrato em Marx como referência e subsumindo a aparência do fenómeno com a sua essência. O caos conceptual que este fenómeno tem criado ao marxismo e esquerdas adjacentes, no entanto, não conduziu a uma séria reconsideração das categorias base que utilizam para pensar no capitalismo e neste momento histórico. Na verdade, encontramos hoje uma tal confusão conceptual, uma tal superfluidade da crítica, que mesmo aqueles entre nós que tentam discutir novas formas de organização, novas formas de pensar, acabam a reproduzir as mesmas interpretações já bafientas. O próprio marxismo «ontologizou-se», as categorias tradicionais que marxistas utilizaram para compreender o capitalismo transformaram-se em categorias naturais: já nada pode ser pensado além da luta de classes, dos sindicatos e da tomada do Estado por parte do proletariado. Já nada pode ser pensado além do trabalho abstrato. Ainda há demasiadas pessoas que, ao observar um momento de individuação da luta de classes, creem estar perante aquele pretenso motor da história, quando na verdade estão a ser ensurdecidas por um dos seus pistons.
No campo da teoria, há muita «des-ontologização» que ainda está por fazer.
No campo da prática, veremos se ainda vamos a tempo.
Pedro Casanova, estudante de doutoramento em Sociologia, aspirante a desempregado
1 Algo que por vezes é ignorado é o facto de que, já no início, com a forma-mercadoria estamos perante uma forma de capital, se bem que essa questão só fica clara no fim do terceiro capítulo. Esta questão, também desenvolvida neste manuscrito não publicado que mencionei no ponto anterior, é particularmente relevante já que em todos os momentos da discussão – mesmo quando Marx nos fala da comparação entre duas mercadorias, ou entre duas unidades de capital – a existência de capital é pressuposta.
ADORNO, Theodor, 2019, Ontology and Dialectics, Polity Press
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MARX, Karl, 1971, Theories of Surplus-Value, vol.3, Progress Publishers, Moscow
MARX, Karl, 1973 Grundrisse, Penguin Books
MARX, Karl, 1976, Capital, A Critique of Political Economy, vol.1, Penguin Books
Referências sobre a interpretação de Marx que eu detalho no texto:
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