[DE CARNE E PEDRA]

6.4.2025
https://jardimdaestrela.wordpress.com/wp-content/uploads/2015/06/11330464_1101862559827130_1252597892_n.jpg
https://jardimdaestrela.wordpress.com/wp-content/uploads/2015/06/11330464_1101862559827130_1252597892_n.jpg

Estátua (es·tá·tu·a), nome feminino. Figura em vulto modelada, esculpida ou fundida, representando uma personagem, uma divindade ou animal. Pessoa sem ação nem vivacidade1. Nome feminino? Certo, está certo. Talvez na gramática o seja. Nas ruas desta cidade nem tanto. Entre reis, santos, escritores, navegadores e militares, as únicas mulheres que parecem surgir desta paisagem memorial são as que – de peito desnudo, no mínimo –, os coroam sob as abstrações da Fama, Liberdade, Pátria ou Virtude. 

Imemoráveis mas inesquecíveis2. Nas itinerâncias da nossa vida urbana, brotam das praças, das ruas, dos jardins, homens que resistem à passagem do tempo – de bronze, alumínio, pedra – pedindo-nos que olhemos para eles. Nem sempre lhes concedemos essa simpatia. Não obstante, há séculos (milénios?) que nos parecemos – ou alguém parece – preocupar com estátuas, sobretudo, com a reivindicação à eternidade de alguns homens que se montaram em altos pedestais. 

Este ensaio é sobre estátuas de homens e estátuas de mulheres. Poderemos dizer que é sobre género e direito sobre o tempo, a representação e a memória. Comecemos então muito ali atrás, desenhando uma atabalhoadamente curta mas convicta história das pessoas de pedra. 

Contava Ovídio, em Metaformoses, histórias de mitológicos tempos idos que, pelo seu caráter lendário, nos servem de matéria para começar este percurso. No Livro X, deparamo-nos com o famoso Pigmalião, escultor oriundo da ilha do Chipre e homem francamente desiludido com o comportamento das mulheres que o rodeavam. Estas mulheres, as propoetides, alegadamente prostitutas e libertinas (condutas imperdoáveis), foram alvo de raiva divina e acabaram transformadas em pedra. Face a tudo isto, Pigmalião, enojado com as «falhas (...) que a natureza havia dado à mente feminina»3, recorrerá à sua arte para esculpir em mármore a mais bela mulher alguma vez vista. O escultor apaixona-se pela sua própria criação, beijando-a e deitando-se com ela. Pigmalião pede, então, a Vénus que lhe conceda uma mulher como aquela. A deusa acede aos seus pedidos e dá vida à estátua: mulher tímida e dócil com quem Pigmalião se casa e terá uma filha. O mito de Pigmalião deu azo a muitas interpretações metafóricas no âmbito da imitação e da educação. No entanto, aquela que não consigo evitar ver saltar de entre estas linhas é a seguinte: a única mulher virtuosa, digna de vida, é aquela criada pela mão de um homem. Sem vícios, dócil, amável, desnuda e esculpida pelo olhar masculino. Uma estátua é uma mulher ideal: quieta, nua, obediente. Em todas as mulheres de pedra por aí condenadas a adornar homens gloriosos, vejo esta Galatea, a quem ninguém perguntou se queria ser esculpida nua, beijada e tocada por Pigmalião, que tem direito apenas a ser uma abstração da feminilidade perfeita. 

Na mesma obra, no seu livro IV, surge-nos a história de outra mulher, esta bem conhecida e temida. A terrível Medusa. Todas conhecemos a sua história, recuperada como símbolo da raiva feminina. Violada por Poseidon e castigada pela sua beleza que havia seduzido o deus, foi condenada a ser um monstro temível, com cabelo de serpente e um olhar que transformava homens em estátuas de pedra. Medusa foi decapitada por Perseu. Por favor, ninguém quer uma mulher chateada, vingativa, descontrolada. Ou, nesta história que aqui contamos, também é preferível que uma mulher não decida sobre o estado do corpo de um homem, sobre se ele é pedra ou carne, sobre se ele existe ou não passa de uma ideia. 

Ao procurar uma história das estátuas no espaço público, perdemo-nos nos seus muitos inícios possíveis. Já na Roma Antiga, a estatuária pública tinha um papel relevante para o orgulho cívico e para a memória pública. Tal era o caso que, nos chega até hoje a expressão damnatio memoriae, referente ao ato de apagar do registo histórico e da estatuária pública aquele que havia caído em desgraça. Mais tarde, na Europa medieval, a estatutária ganha um relevante papel como uma espécie de pele textual que enriquece catedrais e igrejas, tornando-se numa ferramenta narrativa e memorial4. Percebemos facilmente: a ideia de erguer uma estátua a alguém foi longamente associada com a de não permitir o seu esquecimento, de a cravar irreversivelmente no imparável fluxo temporal, apesar da natural efemeridade do corpo humano. Até no final da incontornável tragédia de Romeu e Julieta, Montéquios e Capuletos prometiam construir estátuas aos jovens tragicamente desaparecidos. Ao mesmo tempo, poder-se-á argumentar que a estatuária foi usada igualmente como narrativa, como ferramenta para não só representar pessoas, mas sobretudo para as construir como personagens históricas ou míticas5

Alguns autores apontam para que a primeira estátua concebida exclusivamente para o espaço público remonte a 1572, na cidade de Messina, para representar o imperador D. João da Áustria6. Assim se terá inaugurado, ou acelerado, um processo secular – que se prolonga até aos nossos dias – de memorialização no espaço público e que teve o seu apogeu em meados do século XIX com uma onda de «statuemania» que percorreu particularmente França, Alemanha e Itália7. Como cogumelos, surgem os grandes homens das nações e dos impérios, em gestos de grandeza e montados em cavalos, no topo de altos pedestais. Por todo o lado. Tanto pululavam estes homens-estátua pelas cidades, que até pensadores do final do século XIX, como Percy Fitzgerald8 ou Thomas Carlyle9,  se queixavam do seu excesso. Assim se criou um panteão de heróis – homens brancos, naturalmente, que outro tipo de herói poderia existir? – que vinha moldar um imaginário nacional a partir do palco urbano. Eram os guardiões de um novo tempo10, os corpos que mereciam glória e eternidade, que ordenam o presente a partir do passado. Eles já morreram mas nós ainda vivemos no seu tempo, advertem-nos. Ao mesmo tempo, marcam flagrantemente o padrão de corpo que merece glória, que é digno de força e imortalidade, que vale por si mesmo, com um nome e  uma história própria: o do homem branco. Montado a cavalo, de braço apontado para o horizonte, torturado nos seus densos pensamentos ou em pleno ato de governar. Frequentemente, surge este homem adornado por mulheres seminuas – abstrações de Pátria, Virgindade, República, Liberdade –- ou por animais imponentes e ferozes,  como leões e cavalos. 

As coisas não mudaram assim tanto. Penso que uma estátua de pé nos lembra que ainda vivemos no seu tempo ou, pelo menos, sob alguma da estrutura ideológica que a sustenta. Neste caso, sob os seus rijos ombros de pedra, parece ainda pousar aquela enorme palavra a que chamamos patriarcado. Aqui vão alguns exemplos: nos EUA, apenas 6% das estátuas no espaço público representam mulheres, 4,7% no Chile e 2,7% no Reino Unido11. O avanço dos direitos das mulheres não se parece ter espelhado particularmente na sua presença no espaço público.

Proponho um olhar para os homens – e as mulheres – de pedra e bronze da cidade de Lisboa. A nossa cidade tem mais de uma centena de estátuas no espaço público. A primeira grande estátua construída para o espaço público na cidade de Lisboa foi a brutal representação equestre de bronze de D. José I, que remete a 1775, ano em que o rei celebrou os seus 61 anos. Comecemos por dizê-lo: quase nenhumas são as mulheres reais (em oposição àquelas que são apenas um adorno estatuário ou aos nus sem nome) com direito a uma representação material neste panteão urbano. Sophia de Mello Breyner, Catarina de Bragança, Maria Amélia Carvalheira, Júlia Lopes de Almeida e Kasturba Ghandi (apesar de esta surgir ao lado do seu marido) estão entre as felizardas. As outras estátuas – as dos homens – representam dezenas de reis, escritores, artistas, navegadores, heróis do liberalismo, responsáveis pela reconstrução da cidade de Lisboa, militares vitoriosos, santos, políticos, engenheiros, desportistas e músicos. 

Não significa isto que os corpos de mulheres estejam ausentes da estatuária. Bem pelo contrário, existem dezenas de corpos femininos – de mulheres que não existem, sem história, sem nome – que adornam a performance da glória masculina. A estátua do Marquês de Pombal é adornada com uma mulher seminua que representa Lisboa. A estátua de Sousa Martins conta com uma figura feminina seminua que representa a Ciência. A estátua de D. Pedro IV no Rossio está rodeada de mulheres representativas da Prudência, Justiça, Fortaleza e Moderação. Uma estátua em homenagem a Eça de Queirós representa-o agarrado a uma mulher seminua, que seria a Verdade. Um busto de José Rosa Araújo é adornado por uma mulher nua que representa Lisboa. A estátua de Sá da Bandeira é acompanhada de uma mulher que representa a História e outra que representaria África. Como imaginam, não termina aqui. Poupo-vos à exaustão de uma lista completa.

Simultaneamente, os nus de mulheres inventadas, surgindo sem qualquer contexto, são igualmente lugar-comum. Podemos esbarrar com um nu feminino de 1948 no Castelo de São Jorge, sem aparente contexto. No parque Eduardo VII, repararemos numa estátua de 1958 de uma mulher nua com um cavalo. No Jardim da Estrela, deparamo-nos com uma estátua de uma jovem nua sob o desconfortável título «Despertar». Na praça Afonso de Albuquerque encontramos várias figuras femininas – adivinhem – nuas, com cabras, cavalos e crianças. Na Estufa Fria, a estátua da «Menina Calçando Meia» é igualmente um nu feminino (de facto, apenas com uma meia calçada). No Campo Grande, será que a «Mulher Vendo-se ao Espelho» estará vestida? Não está. Está tão nua como as Tágides que adornam a Fonte Luminosa da Alameda. Algumas têm direito a estar vestidas – apesar de continuarem a ser mulheres que não existem – como a Varina, uma lavradora ou uma imigrante. Talvez seja curioso aqui dizer que uma destas estátuas a mulheres-abstrações foi já alvo de um ato de iconoclastia revolucionária. Em 1974, a estátua «As Mulheres Portuguesas Gratas a Salazar» foi decapitada e removida do espaço público12. Volto ao rol de mulheres nuas e sem vida (começo a ficar enraivecida ao escrever estas linhas). No arque Eduardo VII, a estátua «A Mãe e Filho» representa esta mãe totalmente nua. Porquê? Porque somos sempre nuas? Em poses subservientes? Porque somos sempre abstrações e adereços? 

A glória do masculino pressupõe a humilhação e anulação do feminino. É essa a ruidosa legenda de todos estes conjuntos escultóricos que nos atormentam. Um grande homem pressupõe a existência de pequenas mulheres, preferencialmente nuas e obedientes. Aliás, melhor que não existam mesmo além do seu corpo, que esse dá jeito. Outra ideia salta de entre estes blocos de pedra: as mulheres não têm direito à heroicidade. Elas podem almejar coroar um grande homem ou até mesmo adornar a sua vida. Uma mulher não é um génio ou um herói e, por isso, não perdura no tempo. Ela é ou representante perfeita de todas as submissas virtudes da feminilidade ou condenada ao vício e à monstruosidade. As mulheres não existem no tempo como figuras reais ou personagens históricas, mas como mães, esposas, virgens, virtuosas, que carregam o peso de cuidar da reprodução dos grandes homens e de chorar as suas mortes trágicas – como as pietà 13 –, mantendo vivas as suas memórias. E ainda agradecer por isso. Muito obrigada, que prazer foi. 

Não vou fazer aqui o favor de estender a enorme lista de mulheres da História que poderiam ter sido estátuas. Se não sabem quem elas são é porque estão em falha, por isso façam o favor de as ir descobrir sozinhos. A pergunta que me apraz é outra: queremos estátuas para as nossas heroínas iguais às destes homens? 

As estátuas a mulheres surgem frequentemente numa relação dialética com as dos homens, pressupondo que representam uma contramonumentalização face a figuras masculinas ou, pelo menos, uma resposta à sua predominância. Em Westminster, onde várias estátuas a destacadas figuras históricas foram colocadas ao longo do tempo, figura agora Millicent Fawcett, uma das líderes do movimento sufragista no Reino Unido. Foi a primeira mulher a ser homenageada com uma estátua na Parliament Square e coabita agora com figuras como Winston Churchill ou Lloyd George. Ao por aqui passarmos, não conseguimos deixar de constatar que o género desta estátua funciona como uma espécie de contramonumentalização ao panorama totalmente masculino desta curadoria de heróis da nação britânica. A estátua repercute os moldes estéticos da estatuária tradicional, tal como muitas outras estátuas a mulheres sufragistas o fazem, representando uma espécie de luta feminista e de corpo feminino que se tornou aceitável e neutralizado e, por isso, passível de se transformar em pedra pública.

Não termino com uma resposta. Mas não deixo de me inquietar: queremos estas estátuas tradicionais e sempre iguais que parecem apenas completar e conferir uma certa permissibilidade às paisagens memoriais masculinas? Fawcett ali fica ao lado de Churchill que, além de um confesso racista, se opôs durante largos anos (apesar de uma tardia mudança de opinião) ao voto feminino e à capacidade de as mulheres decidirem sobre as suas vidas. Não é a melhor companhia. Talvez algumas das estátuas de homens devessem simplesmente deixar de estar de pé. Penso na estátua de Francisco Franco que, do alto da sua exacerbada masculinidade fascista representada numa estátua equestre, foi pintada de cor-de-rosa por antifascistas, manchando esta performance com uma cor tão «feminina» e acabando por ser retirada. 

Mas as inquietações permanecem. Mesmo aceitando que há estátuas que deveriam abandonar o espaço das nossas cidades, que novas formas de memorialização queremos? Talvez queiramos formatos de memorialização alternativa que quebrem a relação dialética com a masculinidade e que contrariem os modelos estéticos da modernidade patriarcal, colonial e heteronormativa? Não tenho respostas, infelizmente. Sobre a quietude e obediência forçada das estátuas femininas com as quais me fui enervando ao longo desta longa, poderei apenas contrariá-la com as palavras de uma das melhores de nós, que encarrego de terminar este texto por mim, sem mais explicações. 

They shut me up in Prose –

As when a little Girl

They put me in the Closet –

Because they liked me «still»   –

Still! Could themself have peeped –

And seen my Brain – go round –

They might as wise have lodged a Bird

For Treason – in the Pound –

Himself has but to will

And easy as a Star

Look down opon Captivity –

And laugh – No more have I – 

14

1 - Priberam, s.v. «Estátua, n.» consultado em fevereiro, 2025 https://dicionario.priberam.org/est%C3%A1tua 
2 - Expressão emprestada, num contexto diferente de Thrift, Nigel. Non-Representational Theory: Space, Politics, Affect. Routledge, 2008. p. 19
3 - Ovid. Metamorphoses – With an English Translation by Frank Justus Miller in Two Volumes Books IX-XV. Harvard University Press, 1958. p. 81
4 - Gjesdal, Krstin and Fred Rush, Ingvild Torsen. Philosophy of Sculpture – Historical Problems, Contemporary Approaches. Routledge, 2021. p. 2
5 - Preciado, Paul. «When Statues Fall»,  Artforum (2020). https://www.artforum.com/features/paul-b-preciados-year-in-review-248910/ 
6 - Michalski, Sergiusz. Public Monuments – Art in Political Bondage 1870-1997. Reaktion Books, 1998. p. 8
7 - Para mais sobre estátuas e a sua relação com a temporalidade Shanken, Andrew. The Everyday Life of Memorials. Zone Books, 2022. 
8 - Fitzgerald, Percy. «The Philosophy of a Statue». The Art Journal Vol 5 (1879): 338-339.
9 - Rozas-Krause, Valentina and Andrew Shanken. Breaking the Bronze Ceiling – Women Memory and Public Space. Fordham University Press, 2024. p. 14
10 - Shanken, «Everyday Life of Memorials», 45.
11 - Rozas-Kraus and Shanken, «Breaking the Bronze Ceiling», 1. 
12 - Brinson, Isabel. «Ditas e Desditas». https://ditasedesditas.teatrodobairroalto.pt/asmulheresportuguesas 
13 - Rozas-Kraus and Shanken, «Breaking the Bronze Ceiling», 8. 
14 - Dickinson, Emily. «They Shut me up in Prose (445)».The Poems of Emily Dickinson. Harvard University Press, 1999. Consultado em https://www.poetryfoundation.org/poems/52196/they-shut-me-up-in-prose-445