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17.4.2025
O Monge à beira-mar, Caspar David Friedrich (1808-1810)
O Monge à beira-mar, Caspar David Friedrich (1808-1810)

«O meu reino não é deste mundo.»

(João 18:36)

Há vidas que valem manchetes, e há vidas que desaparecem no rodapé do mundo. Gaza queima diante dos olhos de todos – e mesmo assim há quem diga que não vê. Já o Haiti arde no escuro, sem câmaras, sem hashtags, sem protestos no Ocidente civilizado. A tragédia, nestes tempos de espectáculo, precisa de palco. E quando não há plateia interessada, não há angústia – só silêncio.

Em Gaza, o cenário é insuportável. Um povo cercado, bombardeado, privado de água, comida, energia e dignidade. Há escolas destruídas, hospitais sem capacidade, crianças retiradas dos escombros. E apesar da violência brutal e sistemática, ainda há alguma visibilidade – fruto sobretudo da mobilização popular, da solidariedade internacional e da resistência incansável do povo palestiniano. Ainda há imagens. Ainda há vozes.

O Haiti, por sua vez, parece ter sido esquecido por completo. A capital encontra-se dominada por grupos armados. A fome alastra, os serviços básicos colapsaram e milhões vivem presos entre o abandono e a violência. Mas não há transmissões em directo nem grandes reportagens de última hora. Pouco ou nada se diz. O silêncio sobre o Haiti não é recente – é estrutural. O país foi castigado historicamente por ter ousado libertar-se do jugo colonial e nunca teve direito à empatia das potências que se dizem democráticas.

Falar do Haiti não é conveniente porque obriga a encarar um passado e um presente de violência colonial crua: escravidão, independência sabotada, dívidas impostas, ocupações sucessivas, manipulação política e económica sem tréguas. Alejo Carpentier captou essa realidade antiga em El Reino de Este Mundo, onde descreve um povo que, recusando esperar por milagres no Além, exigiu justiça neste mundo – e foi por isso castigado.

Carpentier contou essa história à sua maneira, entre o real e o maravilhoso, mas sempre ancorado na verdade brutal da colonização. Aqui não há heróis imaculados nem milagres redentores. O que há são corpos que resistem, rituais que invocam poder, uma fé que se mistura com pólvora e sangue. O protagonista, Ti Noel, assiste ao nascimento e à queda de impérios, vê reis negros imitar os colonizadores brancos, vê revoluções traídas e esperanças que se repetem como castigos. A promessa cristã de um paraíso depois da morte torna-se irrelevante diante da urgência de quem quer viver agora – e é por isso que o livro é tão desconfortável: porque recusa consolar.

O Haiti de Carpentier – como a Palestina de agora – não espera por um Além redentor. Não há promessa que alivie a fome, nem céu que cure o abandono. Este é um reino deste mundo, feito de carne e de pedra, de história e de violência, onde a liberdade foi conquistada, e depois traída, esquecida, vendida. E quem ousa resistir aqui, sem esperar milagres, acaba quase sempre lançado para fora da memória – como se nunca tivesse existido.

E mesmo quando tudo empurra para esse esquecimento, há corpos que insistem em ficar. No Other Land é o retrato dessa persistência. Realizado por Basel Adra, Hamdan Ballal, Yuval Abraham e Rachel Szor, mostra-nos o que acontece quando a câmara não serve para explicar, mas para expor; não para suavizar, mas para tornar insuportável esse silêncio. Filmado entre 2019 e 2023 nas colinas ao sul de Hebron, o documentário mostra a destruição sistemática de comunidades palestinianas por parte do exército israelita: casas derrubadas, escolas arrasadas, vidas destruídas pedra a pedra. A importância de No Other Land não está apenas nas imagens, mas no gesto político de quem filma: um dos realizadores, Hamdan Ballal, foi recentemente detido pelo exército israelita, após ter sido agredido por colonos armados, e mantido numa base militar antes de ser libertado. Ver este documentário é, por isso, também um acto de resistência: é não deixar que desapareçam.

Mas nem todos os lugares têm quem os filme. Nem todos os esquecidos têm rosto. Se Gaza, mesmo sitiada, fura por vezes o silêncio com imagens e gritos, o Haiti é apagado em silêncio, sem nome, sem narrativa. Lá, onde a violência é total mas dispersa, nem sempre há tempo para símbolos – há apenas sobrevivência.

Os gangues, que dominam partes do território haitiano, não surgiram por acaso: são fruto de pobreza extrema, de ausência do Estado e promessas políticas que tardam a ser cumpridas. Não têm ideologia nem projecto: o que os move é o poder, o dinheiro e o controlo dos territórios. A violência é extrema e desproporcional, muitas vezes dirigida contra civis inocentes: sequestros, execuções, violações, incêndios de casas com famílias no interior. Muitos destes grupos misturam esta violência arbitrária a práticas espirituais, sacrifícios e rituais. Há ali bruxaria, sim, mas também o vazio. Um terror organizado, mas sem causa. Tal não desperta a compaixão internacional – apenas o nojo, o desinteresse, a caricatura. E este silêncio do mundo, cúmplice.

Gaza é espectacularizada porque há mártires, há bandeira. O Haiti, que vive uma violência igualmente brutal, mas mais difusa e sem palco, não serve nem para alimentar o imaginário. Mas as origens são semelhantes: pilhagem, ocupação, sabotagem, décadas de interferência externa. A diferença está apenas na utilidade que cada dor tem para o olhar do mundo.

E no entanto, o que menos se discute – e mais importa – é o que fez surgir estas formas de resposta ao colapso. Os gangues no Haiti e grupos como o Hamas são realidades distintas, com naturezas, estratégias e impactos incomparáveis. Mas ambos são frutos distorcidos de contextos extremos: de Estados falhados, de décadas de humilhação, de ocupação e fome, de abandono internacional. São respostas disfuncionais a um mundo que fechou portas. Condená-los moralmente sem compreender politicamente é alimentar a ilusão de justiça enquanto se abdica de qualquer hipótese de transformação real.

A política internacional precisa de deixar de reagir apenas com medo e força a estas formações e começar a encará-las como o que também são: sintomas profundos de um sistema falhado. Enquanto não se enfrentar de forma séria o que as faz nascer e crescer – o passado colonial nunca reparado, o presente neocolonial disfarçado de ajuda, o abandono político deliberado – elas vão continuar a surgir. E vão surgir mais fortes, mais caóticas, mais difíceis de combater. Compreender as suas raízes não é desculpá-las: é a única forma de as desarmar de forma consequente. Ignorar a história, ignorar os contextos, é insistir num combate cego, que falha sempre nos mesmos lugares. Sem diagnóstico, não há solução. E sem responsabilidade colectiva, não há justiça – só repetição.

Esperar por respostas institucionais, nestes casos, parece cada vez mais ilusório. Mas há sempre espaço para formas de solidariedade que não dependem de Estados nem de grandes estruturas. Informar, partilhar, apoiar financeiramente iniciativas locais, pressionar através da mobilização directa. Tudo isso conta. Não resolve, é certo, mas recusa a indiferença.

O mundo escolhe onde olhar. E ao escolher, molda o que é visível, o que é narrável, o que é digno de luta. Gaza ainda fura essa lógica, porque o povo insiste em existir. O Haiti precisa de ser trazido de volta à conversa – não como nota de rodapé, mas como parte central da crítica a um sistema que desvaloriza vidas fora do seu radar de interesse.

Ver é já um acto político. Falar, mais ainda. E às vezes, o mínimo – dizer que algo está a acontecer – é tudo o que resta para quem foi deixado no escuro.

*A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.