[SUPERAR ABRIL]

26.1.2025
Adolf Strakhov, Lenin (1924).
Adolf Strakhov, Lenin (1924).
Distinguimo-nos dos outros homens porque concebemos a vida sempre revolucionária e, portanto, amanhã não declararemos definitivo o nosso mundo realizado mas deixaremos sempre aberta a via para o melhor, para harmonias superiores. Não seremos nunca conservadores, nem mesmo em regime socialista; queremos que o relojoeiro das revoluções não seja um facto mecânico como o mal-estar, mas seja a audácia do pensamento que cria mitos sociais sempre mais altos e luminosos.1

«A última revolução europeia»2:  é esta a premissa que José Medeiros Ferreira mobiliza para caracterizar o biénio revolucionário português, condensando os anos de 1974 e 1975 num passado ausente de futuro. É certo que a consideração do autor se escora na perspetiva histórica do evento. Para todos os efeitos, o processo revolucionário português foi, de facto, a última experiência revolucionária – e socialista – na Europa, até aos dias de hoje. Todavia, a historiografia dominante é profícua em gerar narrativas tautológicas sem valor prospetivo: se assim não o fosse, não seria, certamente, dominante... aí reside uma das suas principais valências ontológicas e epistemológicas. Ademais, não compete à História «apontar para a frente» como Lenine: o estudo da mesma poderá auxiliar esse intuito, mas não pode definir per se um sentido teleológico prospetivo. O dedo daquela disciplina está irremediavelmente apontado ao passado.

Por conseguinte, diz-nos Enzo Traversos que «a memória transforma-se em “obsessão comemorativa” e a valorização, por vezes mesmo a sacralização, dos “lugares de memórias” engendra uma verdadeira “topolatria”»3. Este princípio é inquestionável quando nos deparamos com a historiografia pululante sobre o 25 de Abril de 1974, bem como com o processo revolucionário que lhe seguiu, ou quando saímos à rua nesse mesmo dia para comemorar o fim do tardo-fascismo português e o início de um processo revolucionário em Portugal [mais à frente voltaremos a esta questão...]. A História, com as suas fronteiras epistemológicas/metodológicas que lhe são intrínsecas, não deixa de adensar os desígnios comemorativos e apologéticos do acontecimento, fossilizando-o estaticamente enquanto objeto museológico, na maioria das vezes obsoleto: este é o decurso «inato», diga-se, da disciplina. Não obstante, a hegemonia de visões ideológicas sobre o passado – que inelutavelmente condicionam o presente – joga-se também nas esferas historiográficas e memoriais. Ainda assim, as possibilidades do «depois» estão mais dependentes do «agora» do que do «antes», mesmo que estes se influenciem em catadupa.  

Ousemos então, através desta reflexão, romper com as lógicas dominantes hodiernas e invertamos a frase epigráfica de Medeiros Ferreira: porque não, ao invés de vislumbrarmos a Revolução portuguesa como a «última» revolução europeia, percecioná-la, sim, como a primeira de muitas que (ainda) estarão por vir? Essa inversão, contudo, será apenas possível se, imperativamente, superarmos Abril. E, quiçá, a própria História enquanto «instrumento» de definição de horizontes futuros.

Preliminarmente, e em jeito propedêutico, desmistifiquemos um pressuposto teórico basilar: superar não é negar. A negação da importância modelar do 25 de Abril de 1974 e do processo revolucionário que lhe seguiu, enquanto exercício axiológico e histórico-memorial, não cabe nas páginas deste ensaio. Entenda-se «superação» na aceção dialética do termo, isto é, na assunção de um movimento disruptivo que visa «ultrapassar» Abril aquando, precisamente, da sua existência histórico-condicionada/determinada e a sua importância multidimensional. 

Ora, neste enquadramento teórico que visa a «superação» de Abril, quais são os escolhos que impedem a sua consumação? Com efeito, atendamos a dois conceitos que marcam de forma indelével o nosso quotidiano e estão dialeticamente articulados nos seus desdobramentos: temporalidade e nostalgia. 

No concernente ao primeiro, tomemos o pensamento do jovem Walter Benjamin na sua noção de tempo. Numa perspetiva qualitativa, que visava suplantar a quantitativa, a temporalidade é tanto rememoração (do passado) quanto for promessa (do futuro)4. Não nos interessa muito a visão messianista/redentora que enformava o espírito de Benjamin à época desta reflexão – e que inelutavelmente desembocaria num certo idealismo a-histórico. Destacaremos sim, neste âmbito, esse binómio retrospetivo/prospetivo que corporiza a temporalidade benjaminiana. 

Aludamos ainda às noções de «espaço de experiência» e «horizonte de expectativas» de Reinhart Koselleck, enquanto dimensões condicionadas e condicionantes face ao que entendemos por «tempo histórico». Segundo este autor, é a tensão dialética entre a «experiência» – onde se determina a memória e a praxis – e a «expectativa» – constituída por um provir preferencialmente esperançoso – que modela a nossa noção de «tempo histórico»5. Ou seja, segundo a perspetiva de Koselleck (de resto, no seguimento benjaminiano já dilucidado...), na ideia de um «tempo histórico» encerram-se as perspetivas passadas, presentes e futuras da dimensão acontecimental.

Ora, se o 25 de Abril de 1974 é um marco de referência histórico-temporal – «a data de 25 de Abril de 1974 marca, pois, o século XX e divide a sociedade em “antes” e “depois”»6 –, para onde foi remetido o «depois» do «depois»? As locuções adverbiais empregues na citação são as duas faces da mesma moeda que é a noção de temporalidade presentista: um «antes» que não quer ser «depois» e um «depois» que estática e inocuamente se cristalizou num «antes». Destarte, há que romper com as lógicas histórico-temporais fundadas no pós-Abril. É certo que Abril, num sentido polissémico, tanto foi acontecimento quanto é contingência. Abril quer-se «antes» na tese e «depois» na síntese. Contudo, só na sua superação encontraremos novos horizontes de expectativa, concretos e objetivos, dialeticamente fundados em novos espaços de experiência: a antítese escorar-se-á, pois, na práxis politicamente comprometida, contra-hegemónica. A luta é também contra a perceção temporal normativa, socialmente imposta... e, por isso, pós-capitalista.

Desta forma, compete-nos desenvolver novos «espaços de experiência», superando os que se conceberam no passado, para germinarem «horizontes de expectativa» condizentes, que confluam para novos futuros de emancipação. O processo revolucionário português foi um «espaço de experiência» rico em idiossincrasias emancipatórias, que geraram inúmeros «horizontes de expectativa», alguns deles desembocando em «pontos sem retorno», outros sem materialização possível e raros os que se consubstanciaram com o tempo. São estes últimos que urge desconstruir. Além do mais, porque como no passado:

A experiência entra sem bater à porta e anuncia mortes, crises de subsistência, guerras de trincheiras, desemprego, inflação e genocídio. Pessoas morrem de fome: seus sobreviventes pensam o mercado de novas maneiras. Pessoas são presas: na prisão, pensam de novos modos sobre as leis. Diante dessas experiências gerais, antigos sistemas conceptuais podem ruir e novas problemáticas insistir em impor sua presença.7

No tocante à nostalgia, concedamos de novo a voz a Enzo Traverso. Diz-nos este autor que «the ghosts haunting Europe today are not the revolutions of the future but the defeated revolutions of the past»8. O pensamento é sintomático e fala por si, mas tomemos o exemplo do discurso político do Partido Comunista Português (PCP) no que concerne a Abril. No VI.º artigo do capítulo I dos atuais estatutos do PCP, explana-se o seguinte: 

Actualmente, e na continuidade do programa da revolução democrática e nacional aprovado no VI Congresso do PCP e dos ideais, conquistas e realizações históricas da revolução de Abril, o PCP luta por uma democracia avançada – os valores de Abril no futuro de Portugal, simultaneamente política, económica, social e cultural [...].9

Já no artigo seguinte, é proclamado que «a luta em defesa das conquistas da revolução de Abril, pela concretização dos seus valores e pela democracia avançada, é parte constitutiva da luta pelo socialismo»10. Enredado numa certa nostalgia revolucionária – melhor dizendo, perpetuado numa espécie de «o que poderia ter sido feito e não foi? Como podemos voltar a replicá-lo no presente?» – o PCP vai acenando Abril como um espaço de esperança... do passado. É frequente ouvirmos nas ações políticas PCP a frase que exulta a um «Abril e Maio de novo, com a força do povo»... a interrogação que paira é óbvia, a saber-se, exige-se Abril de novo ou um novo Abril que supere o anterior?

Sem equívocos: o uso incomensurável de Abril no discurso político do PCP legitima-se em larga medida no papel determinante que os comunistas detiveram na luta contra o fascismo e no processo revolucionário português. É também costumeiro no discurso político do Bloco de Esquerda – para referir apenas a esquerda com representação parlamentar – o aceno retrospetivo a Abril como fonte de esperança e inspiração. Porém, este é mais visível e audível no discurso do PCP pelo legado e património histórico de participação direta nos dois processos em questão. 

No entanto, importa destacar que esta nostalgia alienante é tanto «necessária» quanto autofágica. É que a esquerda portuguesa está remetida a uma posição de intransigência defensiva ingrata – por imposição das condições materiais e ideológicas do presente, bem como pelo avanço da extrema-direita à escala global –, mas essa obrigação (auto)consciente não a permite olhar para o futuro; apenas administrar o presente e lutar pela memória do passado. Tomemos o exemplo da defesa da Constituição da República Portuguesa (CRP), um dos pressupostos nucleares do discurso político do PCP. Apesar das sucessivas revisões constitucionais orquestradas pela direita portuguesa, o Partido Comunista Português continua a fazer daquele documento jurídico uma arma de arremesso político na batalha ideológica do presente, como se a existência deste fosse condição sine qua non da superação dos óbices face à luta pelo socialismo e pelo comunismo. E não o é, desde logo na assunção de que a CRP é um documento de compromisso pós-Novembro (1975), que materializa essa «contenção compactuada»11 em prol da «normalização democrática» que esconjurou o «socialismo». É como se a CRP fosse uma espécie de «totem» fetichizante do período da Revolução portuguesa, na qualidade de resquício material, e que estamos eternamente condenados a defendê-la... para não superá-la.

Neste seguimento, há ainda um outro ponto de pertinência fulcral: os usos públicos/políticos da História. Sem qualquer tipo de pudor ou instinto puritano, estes, na pretensão explicativa e vetorial de hipotéticos porvires, podem induzir no mínimo à mimetização de acontecimentos – historicamente determinados pelas condições objetivas e subjetivas da época em questão –, ou, no máximo, à subsunção de possíveis novos horizontes de futuro em velhas experiências do passado. A nostalgia a que somos submetidos – por vezes num processo autoinduzido e autoconsciente... – faz-nos então recordar sem um desígnio consequente de agência, comprometendo horizontes de possibilidade pela mera possibilidade de horizontes.

Em suma, a esquerda (portuguesa), bem como todos aqueles que lutam por uma sociedade livre, terá como principal tarefa romper com as lógicas miméticas e castradoras de um possível projeto de emancipação humana vindouro, ou estará condenada a gerir perpetuamente o presente e a hipotecar o futuro. Não podemos, então, reinventar Abril: há que superá-lo. Claro está que toda a reinvenção de um acontecimento passado, não sendo obrigatoriamente uma traição à sua essência primeira, poderá configurar uma superação daquele. Todavia, pela força material e ideológica que ainda insuflam Abril, forjada nesses anos da Revolução portuguesa, se não o superarmos disruptivamente, incorremos no risco de estarmos acorrentados às lembranças do que «conquistámos»  (como é o caso da Constituição da República Portuguesa), ao invés de preconizarmos/imaginarmos o que ainda é possível «conquistar». Ainda assim, podemos inspirar-nos na experiência do processo revolucionário português (1974-1975) – e, porque não?, no que faltou fazer à época em matéria organizativa e revolucionária... –, para novos projetos de emancipação futuros, o que não impele a uma irredutível e inexorável réplica do mesmo.

Para concluir, voltemos as nossas atenções para a imagem de Lenine que inaugura este texto. A estética que toma o revolucionário russo como objeto artístico central  – desde a pintura à escultura – distingue-se pela dimensão direcional, isto é, Lénine foi (na sua maioria) representado a apontar para a frente. Neste sentido, saiamos então da mundividência abstrata para um plano mais objetivo: adiante em que sentido e em direção a quê? Ainda na mesma esteira: precisaremos de uma figura central (como a de Lenine na imagem em questão) a direcionar o coletivo (remetido a uma posição inferior, no mínimo com menos destaque) ou este último pode direcionar-se a si próprio, segundo as suas próprias aspirações? Superar Abril é fazer estas e tantas outras perguntas, para concomitantemente superarmos os termos atuais em que se alicerçam conceitos como a temporalidade, a nostalgia... e a História. Sem intentos proféticos, este ensaio visa apenas facultar uma reflexão panorâmica da questão: a interrogação (crítica) será sempre o primeiro passo para a superação. Os travões da locomotiva (que não para e segue sempre em frente) existem para ser acionados.

1Antonio Gramsci, «Relojoeiro» in Escritos Políticos (vol. 1) (Seara Nova, 1976), 149, sublinhados do texto.
2José Medeiros Ferreira Apud Maria Inácia Rezola, «Definindo o poder político-militar» in Revolução Portuguesa, 1974-1975, coord. Fernando Rosas (Tinta-da-china, 2022), 49.
3 Enzo Traverso, O Passado, Modos de Usar (edições unipop, 2012), 10.
4 Walter Benjamin Apud Maria João Cantinho, Walter Benjamin: Melancolia E Revolução (Exclamação, 2019), 88.
5 Reinhart Koselleck, Futures Past: On The Semantics Of Historical Time (Columbia University Press, 2004), 14.
6 José Medeiros Ferreira (coord.), História de Portugal – Portugal em Transe (1974-1985) (Estampa, 1995), 12.
7 E.P. Thompson, «A miséria da teoria ou um planetário de erros» in A miséria da teoria e outros ensaios (Vozes, 2021), 30.
8 Enzo Traverso, Left-wing melancholia: Marxism, history and memory (Columbia University Press, 2016), 20. 
9 «Estatutos do PCP», Partido Comunista Português. Consultado em Novembro, 27, 2024. https://www.pcp.pt/estatutos-do-pcp.
10 Ibidem.
11 Fernando Rosas, «Ser e não ser. A Revolução portuguesa de 1974/1975 no seu 40º aniversário», Sigilia 34, n.º 1 (2014): 180.