[PRODUTIVIDADE]

22.1.2025
Bolos de arroz

I.

Algo aqui não bate certo. 

Não há nada de estranho com uma senhora que entra num escritório. Na verdade, já vi muitas senhoras a entrar e a sair desta empresa. Algumas delas até aqui trabalham! A Rita, por exemplo, com quem divido a secretária há alguns anos, que me conta e reconta toda a sua história de vida. Várias vezes. Por dia. Em boa verdade, podia escrever um longo romance sobre os dramas da vida da Rita. Já o imagino na minha cabeça. Capítulo 1: A Madrasta; Capítulo 2: A meia-irmã; Capítulo 3: O cão; Capítulo 4: A amante. Ou a Sandra, claro, a Sandra que me pisca o olho sempre que passo por ela no caminho para a casa de banho, o que me deixa bastante confuso. Nunca sei se ela está a meter-se comigo ou, simplesmente, a desejar-me boa sorte. 

Mas esta senhora é diferente. Ao contrário da Rita e da Sandra, que se vestem sempre de forma muito aperaltada para o escritório – é obrigatório, temos um dress code rígido, somos uma empresa séria onde não se toleram essas modernices – ela acabou de entrar por aqui adentro com umas leggings pretas e uns luminosos ténis verdes. Para não falar, claro, daquele tapete de yoga debaixo do seu braço e do largo sorriso na sua cara. Percebo logo que algo se passa. Ninguém entra aqui de leggings. E muito menos a sorrir.

«Olá, meninos!» Meninos? Quem é que esta acha que é? «Estão prontos para fazer... exercício físico!?» Ó diabo. Estou eu a terminar a minha segunda folha de excel do dia, já é quase hora de almoço, ainda por cima hoje trouxe aquele franguinho à fricassé. Está guardado na lancheira nova que comprei no fim de semana, e é daquelas lancheiras boas, que conservam o calor, nem tenho de ficar na fila dos micro-ondas. Passei o domingo todo a pensar no frango e na lancheira, nem dormi bem com o entusiasmo e, agora, esta mulher aparece-me aqui aos gritos? Tento cruzar o meu olhar com o Anacleto, que se senta ali no fundo da sala, mas sou olimpicamente ignorado. O meu amigo já se está a levantar quando o avisto – o Anacleto, que só se levanta nas horas de almoço para sair! Algo não bate certo, aqui.

Viro-me para a Rita e reparo, para meu enorme espanto, que também ela está de leggings e ténis, a posicionar-se de frente para a senhora sorridente. Sinto que isto é uma alucinação, que vou desmaiar, fecho os olhos por uns segundos. Quando os volto a abrir, observo a sala e vejo que toda a gente está de pé, equipados para a ocasião. Leggings, fatos de treino, ténis, bandas para o cabelo. E eu, de fato e gravata, prestes a inserir os últimos números na linha 47 do excel, a verificar se há gralhas no documento, a enviar tudo ao senhor diretor e, finalmente, a ir almoçar o meu frango à fricassé. Lanço um olhar confuso à Rita. O que é que se passa aqui?

«Não recebeste o email? Hoje é dia de exercício no escritório!» Exercício no escritório?  «Ah pois! É uma nova política da empresa para evitar o sedentarismo. Uma personal trainer vem visitar-nos todas as quartas-feiras de manhã para nos pôr a mexer!» Pôr a mexer. Eu, que não planeava mexer mais que os meus dedos hoje, hoje e toda a semana, todo o mês, todo o ano, de repente sou obrigado a mexer-me? Ao lado destes imbecis? Para combater o sedentarismo! Não tenho tempo para ficar incrédulo. A senhora aproxima-se de mim, com o seu largo sorriso na cara. 

«Vejo que este nosso amigo não trouxe roupa para a ocasião, por isso vai ser a primeira vítima!» Quero desaparecer. E se eu saltar daquela janela ali? Talvez assim combata o sedentarismo, pode ser que os chefes fiquem felizes. Pelo menos mexo-me, como eles querem. É isso, vou saltar. Talvez a Sandra me pisque o olho no caminho. E a Rita nunca mais me chateia. «Toca a fazer os dez burpees! Vamos lá!» É agora, vou correr em direção à janela e salto, estamos no primeiro andar, com sorte só parto as pernas e nunca mais tenho de fazer burpees na vida, e ainda consigo tirar uns dias de baixa. «VAMOS LÁ!» Já é tarde demais, já me levantei e já estou a fazer a merda dos burpees, aos saltos enquanto copio o movimento dos meus colegas de trabalho. Alguns deles já estão a suar. «É assim mesmo, meninos!» O Anacleto já não deve saltar desde os anos 80, está ali a suar em bica e ainda nem chegou ao terceiro burpee, ainda tem um ataque cardíaco e cai morto em cima do computador, aí é que vai ser o grande combate ao sedentarismo. Viva o exercício físico. 

Eu já tenho o fato todo desgrenhado e começo a ponderar que, apesar da lancheira nova, talvez seja necessário usar o micro-ondas hoje – não para o frango, mas para a minha cabeça. Ainda vou a tempo de saltar da janela. Finjo que faço os dez burpees, dez minutos antes nem sabia o que era a merda de um burpee, e, quando vou no quarto salto, escapulo-me para a casa de banho, onde me vou esconder até este circo terminar. Quando regresso, toda a gente já está sentada nas suas secretárias, como se nada tivesse acontecido. As bandas saíram das cabeças, os ténis foram trocados por sapatos formais, e o único vestígio da personal trainer é o cheiro a cão morto na sala.

Ainda tento, ao almoço, puxar a conversa com o Anacleto, que continua a arfar, mais de duas horas depois da aparição da nossa senhora dos burpees. Mas não tenho sucesso. «É normal, todas as empresas fazem isto agora, é para os seus colaboradores ficarem saudáveis», diz-me, «é benéfico para as duas partes, percebes? Tu ficas saudável e vives mais, eles ganham um colaborador que nunca falta ao trabalho por doença.» Calo-me e como o meu frango à fricassé, apesar de já ter perdido todo o entusiasmo pelo prato. A lancheira nem era assim tão boa, o molho já está frio. Mas a minha cabeça já não está aí. 

Passo a tarde toda a pensar na quarta-feira seguinte, no inferno que me aguarda nesse dia, tento pensar em desculpas para faltar ao trabalho enquanto a Rita me conta uma história qualquer sobre a infância dela no Gerês. E se eu dissesse que alguém morreu? 

É isso. Aloco um familiar a cada quarta-feira do ano, mato um por semana. Figurativamente falando, claro. Não dava jeito matar ninguém porque a prisão é, teoricamente, pior que os burpees. O plano é fácil de executar, na sexta-feira já tenho os óbitos todos organizadinhos e planeados até Janeiro do próximo ano, será um atrás do outro, sem descanso. Suspiro de alívio. Afinal, está tudo bem. Até consigo ouvir um pouco da história da Rita, que no meio disto já vai na discussão com o primeiro namorado no liceu. Escrevo as datas dos óbitos todos num caderninho que guardo aqui, perco-me nos nomes de familiares, até incluo alguns amigos. Até que sou interrompido pelo toque do telefone. É uma chamada da secretária, que me pede para me dirigir com urgência ao escritório do chefe.

II.

«Boa tarde, senhor Silva, faça favor de se sentar aí.» Uma chamada ao gabinete do senhor diretor raramente é sinal de coisa boa. Muitos dos meus colegas nunca ali entraram, nem sequer falaram com ele. É um tipo muito reservado, que entra todos os dias às seis da manhã no escritório e sai às nove da noite. Contou-me a Rita que, em tempos, o senhor diretor foi uma grande promessa no polo aquático nacional, mas que desistiu do seu sonho após uma grave lesão na virilha. Acabou a dirigir uma empresa de seguros, sem nunca se esquecer daqueles momentos no balneário com os rapazes, que gritavam em alto e bom som a sua alcunha. O Barbatanas. Sento-me à frente desta antiga promessa das piscinas municipais enquanto pensava nesta história.

«Já deve imaginar o assunto que aqui o traz hoje, senhor Silva». Será que este gajo descobriu o meu plano secreto para faltar ao trabalho? Não é possível, acabei de o engendrar. Ainda assim... Ele é implacável, nunca iria perdoar tal coisa, já foi mais severo por muito menos no passado. Como daquela vez em que o Anacleto foi chamado ao gabinete e admoestado por chegar muitas vezes atrasado ao escritório. Quando explicou ao senhor diretor que chegava atrasado porque a sua mulher tinha cancro e que tinha de cuidar dela em casa, o Barbatanas sugeriu que o homem encontrasse uma mulher que não prejudicasse tanto a sua produtividade. Consta, disse-me o Anacleto, que o cancro é um grande obstáculo à produtividade, e que por isso devemos evitar apanhá-lo.

«Perante a seriedade do tema, vi-me obrigado a trazê-lo aqui.» Pronto, vou ser despedido. Já não bastava ter presenciado a força de trabalho inteira desta empresa a suar de manhã e ter comido um frango à fricassé frio ao almoço, para além de no meio disto tudo não ter acabado o excel, e agora este gajo vai pôr-me na rua. Era o que mais faltava. Ainda não abri a boca desde que entrei no gabinete, apenas olho à minha volta nervosamente, até me fixar no poster que está colado atrás do diretor. Um homem bronzeado, com grandes músculos e um sorriso brilhante, pousa ao lado de uma frase com letras fluorescentes: Always Deliver More Than Expected. Respiro fundo e ganho coragem. «Com toda a franqueza, senhor diretor, não sei o que me traz aqui...»

«Ah! O caso é mais grave do que eu pensava. Esperava um pedido de desculpas mal passasse por essa porta, mas o homem nem reconhece a gravidade da situação! Rico colaborador que aqui tenho!» O Barbatanas já está de pé, a nadar de um lado para o outro no seu pequeno cubículo, com as mãos atrás das costas. Aproxima-se de mim e, com um ar consternado, prossegue: «depois de todos estes anos, Silva, esperava isto de qualquer outra pessoa, de toda a gente menos de si.» Os seus olhos estão brilhantes, parece que vai chorar. Como é que vou explicar à minha mulher que fui despedido por ter redigido um plano em que matava um familiar por semana para conseguir escapar às manhãs de exercício físico do escritório. Ela vai compreender, espero eu, até porque agendei a morte dela para a semana antes do Natal, ia dar jeito para irmos fazer as compras que faltam, até dava para irmos ao cinema ver aquele filme novo. Seria um óbito conveniente, digamos assim, em que aproveitaríamos apenas a parte boa da morte, que é a folga.

«A verdade é que uma pessoa como eu, que trabalha neste ramo há muitos anos, está sempre preparada para o maior dos choques – até para aqueles provocados pelos seus colaboradores mais exemplares. Mas deixemo-nos de rodeios, Silva. Vamos diretos ao assunto.» É agora. Preparo-me, respiro e expiro. Penso no que vou dizer à minha família, aos meus filhos. Ele tira os braços de trás das costas para me revelar, na sua mão direita, um relatório repleto de riscos a vermelho. O meu nome aparece no topo da página. O Barbatanas aponta para um gráfico a meio da página. «Senhor Silva.» É agora. «O que lhe deu na cabeça para não ter terminado a sequência de dez burpees

Não reajo durante alguns segundos. Talvez tenha passado um minuto. Fico a olhar para o póster, sem dizer nada. 

Ele ignora o meu silêncio, e continua. «Devia saber melhor que ninguém que o exercício físico é fundamental para a saúde, Silva, e que a saúde é essencial para a produtividade da empresa. Ao não completar a sequência de dez burpees, o Silva está a pôr a sua saúde em risco e, em consequência, coloca em causa o futuro desta empresa. Compreende?» Talvez a imagem tenha photoshop, aqueles músculos não podem ser reais. E os dentes, tão brancos e reluzentes! «Está-me a ouvir, Silva!?» Levanto-me. Pego no troféu de metal que está em cima da secretária, onde se lê Campeões Nacionais de Polo Aquático 1981, e atiro-o à cabeça do senhor diretor. Com o seu corpo no chão, pergunto-lhe: «e isto, han, melhora a produtividade da empresa?», rasgo o póster ao meio, saio do escritório, empacoto as coisas da minha secretária, faço o dedo do meio ao Anacleto, desenho um bigode no retrato do Barbatanas antes de sair porta fora para sempre. 

Acordo para a realidade. Estou de volta ao gabinete. Desvio o olhar do póster. «Sim, senhor diretor, compreendo o que diz e peço-lhe imensa desculpa.» Agora, o Barbatanas tem um largo sorriso na cara, como se estivesse a levantar, novamente, o troféu de 81. «Mas penso, senhor diretor, que o meu tempo podia ser melhor empregue a fazer outras cois-» «Não quero ouvir as suas queixas, Silva! Nem mais uma palavra! Agora, faça os seis burpees que lhe faltam aqui à minha frente, se quer manter o seu emprego.» 

Levanto-me, pouso o meu telemóvel na cadeira, e dou os seis saltos. Estou a suar, com os olhos fixos no troféu de metal. O senhor diretor senta-se para me observar, enquanto se regozija com a situação. Quando termina, dá-me uma pancadinha no rio de suor que se formou nas minhas costas, e acompanha-me à saída. «Muito bem, muito bem, Silva. É bom que não se repita.»

III.

As semanas passaram e os burpees continuaram. Receoso do meu despedimento, abandonei o plano dos falsos óbitos semanais e cumpri escrupulosamente o regime de exercício físico do Barbatanas, que desfilava entre nós todas as quartas-feiras de manhã. «É assim mesmo, Silva!», gritava quando passava por mim, ao confirmar que eu cumpria o prometido. «Só mais um, Sandra!» Os meus colegas ficavam hipnotizados com a senhora das leggings, que se veio a tornar numa autêntica messias. Nos intervalos, falava-se de estilo de vida, de balanço vida-trabalho, de mindfulness. A Rita ofereceu-me um panfleto sobre fazer yoga com cães. E, agora, já não eram apenas burpees. Com o passar do tempo, surgiram as flexões, os agachamentos, os abdominais. 

Até que hoje, com as pernas doridas dos exercícios de ontem, dou de caras com um grande placard à entrada do escritório: Mini-Maratona do Trabalho: Sábado às 10h. Aproximo-me para ler as letras pequenas: Todos os colaboradores são incentivados a juntarem-se – pela sua saúde e pela nossa empresa!. No final da frase, um desenho de uma carinha feliz. Sábado às 10h. O aniversário da minha filha. Dirijo-me imediatamente ao gabinete do senhor diretor.

«Bom dia, senhor diretor, desculpe incomodá-lo tão cedo, mas reparei agor-» «Silva! Que bom vê-lo, homem, vem mesmo a calhar, queria falar consigo hoje, só pode ser obra do destino. Sente-se, sente-se, quer um copo de água?» Lá me acomodo na cadeira do costume, em frente ao póster. «Estou muito satisfeito com a sua dedicação ao nosso programa de exercício físico. Vai fazer mil maravilhas à sua produtividade! Suponho que se junte a nós no sábado de manhã?» «Pois, senhor diretor, era mesmo sobre isso qu-» «Vai ser um excelente momento de team building!» Olho para o troféu de metal. Na cabeça do Barbatanas. Imagino um momento de team building. No seu funeral. Ele senta-se na cadeira. «Bom, mas não é disso que quero falar hoje. Dei uma vista de olhos nas suas análises e fiquei muito preocupado, Silva.»Uma vez por ano, a empresa exige que façamos exames médicos – desde análises ao sangue a eletrocardiogramas. Um ritual que eu muito aprecio, porque falto ao trabalho durante uma manhã e almoço numa bela tasca ao lado da clínica, com o Anacleto, um bitoque e uma imperial. «Reparei que os seus índices de glicemia estão muito altos», diz-me o senhor diretor enquanto passa o dedo pelo meu relatório, com um ar consternado. «E não pude deixar de notar que o senhor Silva tem uma certa apetência pelos doces, não é verdade?» 

Fico em silêncio a olhar para o Barbatanas, que retira outro relatório da sua gaveta. «Por exemplo, na semana passada, o Silva comeu uma fatia de bolo de chocolate na quarta-feira à tarde e um brigadeiro na sexta-feira ao almoço», continua, «e hoje traz, aí na sua lancheira, um bolinho de arroz, não é verdade?» Volta a arrumar os papéis na gaveta e olhou pela sua pequena janela, com vista para um prédio decrépito e meia dúzia de contentores do lixo. Suspira enquanto contempla o seu reino, antes de regressar a mim com um ar duro. 

«Silva, isto são péssimas notícias para a sua produtividade e para a empresa. Segundo um estudo que li há pouco no Google, os diabéticos têm taxas de produtividade significativamente mais baixas que os não diabéticos, tendo em conta o tempo que perdem com as suas maquinetas, seringas e consultas. Eu não posso tolerar isso na minha empresa, como bem sabe. Aqui, primamos pela excelência.»

«Diz-me aqui o mesmo estudo que, para baixar a glicose no sangue, uma boa opção será ingerir alimentos ricos em fibra, tais como feijão, ervilhas, arroz, milh-» Distraio-me, olho novamente para o póster. «Decidi que vamos pôr em andamento um plano para otimizar a sua saúde. Logicamente, todas as suas refeições passarão a ser coordenadas pelo chef da empresa, que te-» O Barbatanas vai falando, mas não oiço quase nada do que ele vai dizendo. O zumbido dos meus ouvidos intensifica-se à medida que ele fala. Fixo-me nos olhos do homem musculado da parede. Always deliver more than expected. Não, aqueles músculos não podem ser reais. «O seu plano de exercício será reforçado e, daqui a um mês, faremos novas análises ao sangue, depois reavalia-» Vou acenando com a cabeça sem perceber bem o que me é dito. «Claro está, vigiaremos a sua alimentação. O consumo de doces e demais alimentos gordurosos será penalizado com um corte de 5% ao seu salário, acumulável a cada infra-» Aceno a tudo, sim, senhor diretor, levanto-me para sair do gabinete quando me apercebo de que ele já terminou. «Ah, já me esquecia, Silva! Aqui está a sua ficha de inscrição para a minimaratona de sábado.» 

Recebo o papel plastificado, sorrio e fecho a porta. Merda, os anos da minha filha. Antes de regressar ao trabalho, dirijo-me à zona dos micro-ondas, para comer o meu bolo de arroz.

IV.

A minha empresa nunca tinha aparecido na primeira página de um jornal. De manhã, vou até ao quiosque da minha rua e escolho aquele que tem a minha manchete preferida. Lucros em Chamas: Sede de Empresa Promissora Reduzida a Cinzas. Sento-me num café, onde leio a notícia na diagonal enquanto como um mil-folhas e bebo um chocolate quente. Para rematar, um café com cheirinho. Hoje não tenho de ir ao escritório.

Regresso a casa e ligo o telejornal. Para minha surpresa, aparece a Rita: «não sabemos o que aconteceu, foi uma catástrofe. Felizmente, todos os colaboradores saíram a tempo do edifício, mas perdemos tudo... anos e anos de trabalho, memórias felizes entre colaboradores... tudo perdido!» A pobre Rita falava de lágrimas nos olhos, incapaz de conter a emoção após ser expulsa do único sítio onde alguém ainda a aturava. «Isto lembra-me aquela vez em que a minha meia-irmã deixou o fogão ligado e-»

O jornalista interrompe-a e dirige-se agora ao Barbatanas, que aparece em frente às ruínas do seu reino, com a gravata chamuscada e umas terríveis olheiras. Incapaz de verbalizar qualquer palavra, a câmara limita-se a filmar o desespero do antigo campeão de polo aquático. Afinal de contas, um incêndio não é nada bom para a produtividade da empresa. Após alguma insistência, o homem lá consegue dizer umas palavras: «não restou nada...», enquanto toca nos escombros, como se fossem as cinzas de um familiar. Ninguém diria que a antiga estrela das piscinas municipais iria mergulhar tão fundo.

Distraio-me da televisão por alguns momentos, sou invadido por um sentimento de nostalgia, provocado pelo estranho efeito que as ruínas têm em mim, a memória de um passado que terminou. Penso na minha infância; em como, há muitos anos, no meio de ordens e raspanetes, me era dito que não se podem colocar folhas de alumínio no micro-ondas. Pode provocar uma explosão!, diziam-me. Sempre tive muito cuidado com os micro-ondas, até porque costumo embrulhar toda a minha comida com folhas de alumínio. Até os bolos de arroz.

O jornalista afasta-se do Barbatanas. Reparo que ele está a agarrar em qualquer coisa – o único material resgatado do incêndio. Parece ser um papel. A câmara amplia o misterioso documento. Reconheço aqueles músculos, os dentes brilhantes, as grandes letras. Sorrio, e desligo a televisão. Always deliver more than expected.