[PONTE PT. 1 — O PROTESTO]

10.1.2025
Júlia Pinheiro uma das caras do Praça Pública
Júlia Pinheiro uma das caras do Praça Pública

(Este texto corresponde à primeira de três partes de um ensaio que em breve estará completo nestas páginas. A segunda parte ocupar-se-á da inauguração da ponte vizinha no ano da Expo e a terceira procurará pensar o significado histórico destes dois acontecimentos ocorridos no tabuleiro de duas pontes sobre o mesmo rio). 

Trata-se de um acontecimento de almanaque. Digno de destaque nas várias atualizações deste tipo de publicação: livros-síntese da década em imagens, peças jornalísticas com a enumeração dos «momentos-chave» de um determinado período, reportagens televisivas capazes de transformar qualquer acontecimento em efeméride e, na sua mais recente versão, publicações no Instagram com a descrição «Neste dia há 20 anos». Impossibilitado de lhe escapar, é por uma destas descrições que começo este texto. 

Então a única travessia rodoviária a ligar Lisboa à margem sul do Tejo, a ponte 25 de Abril foi bloqueada ao início da manhã de 24 de junho de 1994. Entre buzinões permanentes, marchas lentas e fugas ao pagamento da portagem acompanhadas por um «Não pagamos» popularizado pelo movimento estudantil contra as propinas, a experiência da travessia da ponte transformara-se profundamente a uma semana do bloqueio quando o preço da portagem subitamente duplicou. Era sexta-feira e seis camiões acompanhados por algumas dezenas de seguidores munidos dos seus carros estacionaram no acesso ao tabuleiro da ponte, dando início ao que o jornal Público descreveria na manhã seguinte como uma «espécie de “intifada” à portuguesa»1.

Interessa-me começar por contar esta história pensando a forma oposta como terá sido experienciada a passagem do tempo naquele dia 24 de junho. Bloqueada a ponte e frustradas as primeiras tentativas de negociação do seu levantamento, a fila dos automóveis em direção a Lisboa não tardou em atingir os 30 quilómetros, alcançando Setúbal e retendo dezenas de milhares de pessoas no trânsito. Longe da ponte, onde pouco aconteceu, não é difícil imaginar como se terá passado o dia e talvez as imagens dos condutores adormecidos no interior dos seus carros sejam a melhor ilustração. Sendo estes automobilistas a prova visível do sucesso do bloqueio da ponte, aqueles que lhe conferiram o estatuto de maior ação de «desobediência civil» desde a Revolução de Abril de 19742, a sua participação não poderá sequer ser descrita como a de um espectador. Servindo de pano de fundo aos helicópteros que recolhiam imagens, mas sem meios para as poderem ver, estes automobilistas, concordando ou não com o protesto, encontraram-se perante um papel talvez mais passivo que o de um telespectador com acesso ininterrupto aos sons e imagens que transmitidos para todo o país foram dando forma a este acontecimento. 

Coincidindo com o dia de S. João, feriado municipal em Almada, o ambiente descrito pela imprensa escrita é o de um braço de ferro permanente, mas tranquilo com espaço para assar sardinhas e improvisar um pequeno arraial. A tentativa de rebocar os camiões, carregados com pedras e areia, falhara. A intimidação policial e política, reforçada pela pouco discreta aterragem de helicóptero do Ministro Dias Loureiro no tabuleiro da ponte, falhara também. Por último, falhara a negociação entre Governo, Junta Autónoma das Estradas e a Comissão de Utentes da ponte que a meio do dia dizia ter perdido o controlo da situação perante a multidão que acudira à zona das portagens e os automobilistas que saindo dos seus carros engrossavam a frente do bloqueio. Mesmo na Praça das Portagem, onde se concentravam os camiões estacionados, as forças de segurança, os «apeados», todo o aparato televisivo e os muitos habitantes da zona que se deslocaram à ponte para apoiar o protesto ou, simplesmente, para o observar, a maior parte do dia passou-se à espera.

Quando pelas 16h22 se efetuou a primeira de várias cargas policiais, o bloqueio da Ponte 25 de Abril ocupara as últimas dez horas de emissão dos canais de televisão portugueses. Na realidade, a cobertura televisiva do acontecimento é anterior ao início do bloqueio: o processo de representação deste acontecimento enquanto notícia, posteriormente enquanto evento mediático, antecipa-o. A primeira das peças transmitidas pela SIC começa precisamente com imagens do início da concentração dos camionistas na madrugada do dia 24 apresentadas ao telespectador como um «furo» do canal. A convite dos manifestantes, a presença deste canal de televisão no momento da preparação do protesto – um momento ainda «secreto» – permite-nos pensar uma outra forma como a passagem do tempo poderá ter sido experienciada neste dia. 

A observação das várias horas de transmissão televisiva em direto da ponte revela-se bastante útil ao exercício de contextualização histórica deste acontecimento. Não só porque é através da televisão que a vasta maioria da população toma conhecimento e acompanha os desenvolvimentos na ponte, mas pela centralidade que as emissões em direto assumem ao longo deste dia. Não se tratando de uma novidade, o recurso ao direto fora dos estúdios da televisão assume uma crescente importância na reconfiguração da programação televisiva portuguesa com o início de emissão das duas grandes emissoras privadas em outubro de 1992 e fevereiro de 1993. Ainda que para um público algo restrito, meses antes do bloqueio começaria também a operar a TV Cabo. Primeiro serviço de subscrição televisiva pago em Portugal, a televisão por cabo permitia aceder a 30 canais, multiplicando acentuadamente a oferta existente e abrindo a transmissão regular a canais estrangeiros. 

Programas de enorme sucesso como o Praça Pública, emitido pela SIC, são representativos desta reconfiguração da televisão em Portugal desencadeada pela abertura da televisão ao setor privado. Propondo-se a «dar voz» aos «cidadãos comuns», o programa atravessava o país denunciando injustiças sofridas pelos portugueses perante o falhanço dos poderes públicos, discutindo assuntos então polémicos ou, simplesmente, dando a conhecer diversas realidades locais a uma televisão, por difícil que pareça, mais centralista do que aquilo que é hoje. Incorporando no centro do discurso televisivo o testemunho direto de centenas de «anónimos» – Júlia Pinheiro recorda-o como «uma espécie de 112 das pessoas»3 – programas como o Praça Pública são centrais à definição de uma nova forma de «fazer» televisão reconfigurando a sua função mediadora e a sua relação com uma audiência em crescimento. 

Não se tratando de uma «democratização» da televisão na medida em que esta representação popular não participa do processo de produção, de construção da forma televisiva, é antes enquadrada numa estrutura discursiva previamente definida sobre a qual não intervém4; estas transformações trabalham no sentido da criação da perceção de uma «democracia televisiva», um tipo novo de espaço público. O próprio slogan com que a SIC se apresenta ao país na publicidade que antecede o seu início de emissão: «A sua televisão independente» é ilustrativo desta ideia. Na sua investigação sobre a televisão francesa na década de 1980, o historiador François Cusset caracterizou este novo tipo de espaço como o de uma «democracia vulgar, mas justa» descrevendo-o como «um palco onde a preocupação com a justiça não é mais que a cólera contagiosa de pequenos procuradores, onde o problema do discurso não é mais do que o da sua encenação e onde a questão da igualdade se tornou a dos 15 minutos de notoriedade do homem comum». É à luz desta transição para uma nova «televisão da sociedade», por oposição a uma televisão estatal com todas as suas implicações, que considero útil pensar historicamente o bloqueio da ponte.

No dia 24 de junho de 1994, a emissão do Praça Pública mudou-se de armas e bagagens para o tabuleiro da ponte 25 de Abril, à semelhança dos seus programas congéneres transmitidos pela TVI. Desde as primeiras horas da manhã que os sucessivos diretos se esforçavam por dar forma ao acontecimento. Rodeada por dezenas de pessoas, Júlia Pinheiro, uma das caras do Praça Pública, batizava o dia como o da «revolução da estrada»6 passando o seu microfone por todos aqueles que desta revolução quisessem participar. Os repórteres preenchiam os diretos com referências a um «espetáculo», relatando a «tensão permanente» que se fazia sentir e reforçando sempre o carácter único, imprevisível e, note-se, histórico daquele acontecimento. Aquando da primeira carga policial podemos ouvir um repórter descrever um ambiente «ao rubro». Perante a correria permanente dos repórteres e do aparato técnico então necessário para assegurar tantas horas de cobertura em direto um manifestante sintetizou o que procuro descrever: «Parece a CNN quando foi a guerra do Golfo»7.

Então assessor de Cavaco Silva, Fernando Lima recorda nas suas memórias a centralidade da disputa pela representação mediática do evento. Recuperando a teoria da conspiração conjunta de comunistas, socialistas e meios de comunicação social como explicação para o sucedido, Fernando Lima recorda o debate em torno do acesso às imagens aéreas: «Do ar, os helicópteros dos jornalistas transmitiam uma ideia de domínio da situação que parecia estar fora do alcance do Executivo»8. A meio da manhã, os helicópteros utilizados pelas rádios e televisões seriam proibidos de sobrevoar a ponte. A própria interação entre as forças policiais e os jornalistas presentes – não sabendo lidar com a presença um do outro – não deixa de causar alguma estranheza quando vemos estas imagens passados 20 anos, e nos apercebemos que a coreografia que desde então nos habituámos a ver passava ainda por puro improviso.

Do atentado às Torres Gémeas ao menos mediático dos eventos, nenhum acontecimento histórico é passível de ser transmitido «em bruto» por um noticiário televisivo ou uma reportagem escrita. Ou, nas mais rigorosas palavras de Stuart Hall: «um acontecimento tem de se tornar uma «história» antes de se poder tornar um «acontecimento comunicativo»9. Por mais descritivo que se assuma o seu conteúdo, um acontecimento como o que temos vindo a acompanhar terá sido significado por quase todos aqueles que não se encontravam nas imediações da ponte 25 de Abril a partir dos sons e imagens transmitidos incessantemente pela televisão. 

Quem o fez, por exemplo, através do Praça Pública deparou-se com a referida «revolução da estrada» apresentada a partir de uma mistura entre a reportagem de guerra e o reality show. Apesar do desfecho em aberto, do ritmo acelerado com que se relatava o ocorrido e se transferia a emissão de um repórter para o outro, o acontecimento – nesta sua versão televisionada – parecia à partida algo formatado. Certamente, não pela previsibilidade do «conteúdo» em si – pelo menos até à chegada de um reboque capaz de levantar o bloqueio e às sucessivas cargas policiais que dispersaram a multidão –, mas pela forma como todo aquele acontecimento pareceu reduzido à sua própria existência: isolado de todo o contexto cultural, político ou económico que o permitiu. 

É certo que, ao longo do dia, as emissões em direto da ponte foram intercalando com as intervenções de «especialistas», de membros do Governo e dos partidos da oposição. Também é certo que depois da palavra «bloqueio», as palavras «aumento da portagem» – causa direta deste acontecimento – terão sido das mais repetidas do dia. Podemos ainda reforçar que, não só enquanto fundo dos planos televisivos, são centenas os manifestantes (ou curiosos) que são entrevistados ao longo de todo o dia. Contudo, todo este discurso parece incapaz de escapar a uma certa autorreferencialidade: de referencial a referente, é com a «notícia», ou melhor, com um intenso «fluxo noticioso» que tudo o resto se vai relacionar. A narrativa transmitida e construída a partir da televisão parece ser a da reação à reação da reação, um zoom no lugar de um tracking shot para recuperar a metáfora aplicada por François Cusset. Esta «confiança» de uma televisão que parecia, antes de mais, espelhar o seu próprio entusiasmo parece-me explícita nas palavras de Emídio Rangel, então diretor de informação da SIC, recolhidas por Mariana Otero em Esta Televisão É Sua: «Uma estação com 50% de share vende tudo, até o Presidente da República»10.

Retomando à ponte, talvez a expressão mais visível daquilo que tenho procurado ilustrar seja a ideia partilhada por muitos dos protagonistas televisivos daquele dia e visível nas imagens de que nos temos ocupado e em posteriores exercício de retrospeção11 de que naquele dia se fez história.  Aparentemente não tanto pelo seu conteúdo – um tipo de ação de desobediência civil sem precedentes no período democrático – mas pela forma como este pôde ser narrado, portanto, pelos novos mecanismos a partir do qual pôde ser construído enquanto acontecimento histórico. 

Em parte, este texto pode parecer partilhar com a televisão a opção por um zoom em prol de um exercício de contextualização mais amplo. Ao longo deste texto, não falo diretamente de Cavaco Silva ou do «cavaquismo», da brutalidade das cargas policiais do fim daquele dia e do jovem de 18 anos alvejado pela polícia, também não falo das formas de protesto que em setembro retomaram à ponte, ou da novidade representada por este protesto em si. Este exercício, se quisermos, de historicização do acontecimento que aqui procurei pensar na sua dimensão mediática ficará para a terceira e última parte deste ensaio. 

Uma breve pesquisa na internet, nas memórias de destacados políticos deste período ou em quase todos os textos do tipo a que me referi no primeiro parágrafo identificam o bloqueio da Ponte 25 de Abril com o «início do fim do cavaquismo»12. Talvez este texto ainda não o dê a entender, mas é a partir dele que procurei inverter uma tão repetida afirmação que parece ter-se tornado uma certeza e questionar: não será o bloqueio da ponte a prova do sucesso do «cavaquismo»?

Antes, seguiremos para a Ponte Vasco da Gama e para o dia da festa que a inaugurou. Se não for pela coerência narrativa do ensaio que tenho pensado, que seja pela muito direta explicação que tanto Cavaco Silva como Joaquim Ferreira do Amaral, ministro das Obras Públicas, não se cansaram de repetir ao longo destas semanas: é preciso pagar portagem deste lado para se construir uma ponte do outro. 

1 Público, 25 de junho de 1994, 1.
2 Os exemplos multiplicam-se: «Buzinão da ponte. A maior desobediência civil aconteceu há 19 anos» publicado no Jornal I em outubro de 2013 ou a reportagem «Bloqueio da ponte 25 de Abril foi um dos maiores movimentos de desobediência civil desde a Revolução dos Cravos» emitida pela RTP no mesmo mês. 
3 Júlia Pinheiro entrevistada em Felisberta Lopes, Vinte Anos de Televisão Privada em Portugal (Guerra & Paz, 2012), 215.
4 Stuart Hall,  «Encoding/Decoding» em Writings on Media (Duke University Press, 2021), 247-266. 
5 François Cusset. La déccenie: Le grand cauchemar des annés 1980 (La Découverte, 2008), 205.
6 Público, 25 de junho de 1994, 5. 
7 Correio da Manhã, 25 de junho de 1994, 7.
8 Fernando Lima, O Meu Tempo com Cavaco Silva (Bertrand, 2004), 309.
9 Stuart Hall, «Encoding/Decoding», Writings on Media (Durham: Duke University Press, 2021), 249. 
10 Esta Televisão É Sua, Mariana Otero (1997).
11 Por exemplo, Júlia Pinheiro em «Força de Bloqueio» reportagem emitida pela SIC no dia 23 de junho de 2019 e disponível online.  
12 A título de exemplo veja-se as reportagens disponíveis online: «Bloqueio da Ponte. O princípio do fim do cavaquismo foi há 25 anos» publicada pelo Diário de Notícias em 2019 ou «Bloqueio da ponte há 25 anos foi o princípio do «fim de um ciclo» do cavaquismo admite ex-assessor da Cavaco Silva» publicado pelo Público no mesmo ano ou no campo historiográfico: Joaquim Vieira, Portugal Século XX: Crónica em Imagens 1990-2000 (Círculo de Leitores, 1999), 27.