[PENSAR E ENFRENTAR O COLONIALISMO DE POVOAMENTO - O CASO DO CHILE]

14.3.2025
Colonas na receção montada à viagem de estado a Moçambique do presidente Hastings Banda do Malawi, 27 de setembro de 1971.
Colonas na receção montada à viagem de estado a Moçambique do presidente Hastings Banda do Malawi, 27 de setembro de 1971.

O colonialismo de povoamento. Muito além de mero jargão académico, neste curto ensaio, procuraremos provar a sua utilidade como lente operativa imprescindível para entender a realidade política e social de partes significativas do globo.

Este pode ser definido pela sua característica essencial, isto é, a presença de colonos que «vêm para ficar» e estabelecer uma ordem política própria, no lugar de imporem exclusivamente a exploração da mão de obra indígena e dos recursos locais1. O colono não é, no entanto, todo aquele que permanece em território colonizado, mas antes o que nele se fixa e cuja sorte está, de certa forma, ligada à manutenção do domínio colonial. Ficam assim excluídos os burocratas metropolitanos em missão, os soldados, os missionários ou os comerciantes.2 O colonialismo de povoamento pode ainda ser entendido pela negativa – o esforço no sentido da dissolução da sociedade nativa – e pela positiva – o erguer de uma nova sociedade colonial na base territorial expropriada. Pela sua vontade de estabelecer um espaço para si no «mundo colonial», a territorialidade vai adquirir o papel de elemento específico e indissociável desta modalidade de expansão imperial.3 Trata-se, enfim, de destruir para erguer uma outra coisa no seu lugar, nas palavras de Theodor Herzl, fundador do movimento sionista moderno: «If I wish to substitute a new building for an old one, I must demolish before I construct».4

O esforço de despossessão do Indígena e de destruição das sociedades autóctones não se limita, no entanto, ao batismo de fogo do primeiro contacto violento entre estes dois corpos nacionais, assumindo antes a forma de Estado, com todas as ferramentas legais e sociais que o caracterizam, para continuar essa tarefa. Por isso, para Patrick Wolfe, pioneiro nos estudos de colonialismo de povoamento, a invasão caracteriza-se como «uma estrutura e não um acontecimento».5 Vemos manifestaçõespráticas dessa realidade na política de roubo de crianças indígenas no Canadá, Estados Unidos ou Austrália, ao longo do século XX, para serem entregues a missões religiosas com intuito assimilacionista na cultura europeia – «to kill the Indian and save the man» – mas também, como outra face da mesma moeda, nas políticas de limpeza étnica impostas nos bairros árabes orientais de Jerusalém, como é o caso de Sheikh Jarrah.

Acreditando que a maré da História canoniza o fait accompli, os colonos procuram organizar, essencialmente através da violência e recorrendo às expulsões demográficas, a sociedade mais homogénea possível, seguindo a máxima de integrar na sua entidade política o mais vasto território que se entendem capazes de adquirir, com o menor número possível de indivíduos da população indígena. Fazem-no num esforço gradualista e etapista que procura desembocar, com ou sem beneplácito da sua metrópole, num Estado independente. Aliás, aqui reside uma diferença substancial face às modalidades tradicionais de colonialismo, uma vez que o colonialismo de povoamento tende a «extinguir-se» por si mesmo por via da transformação da colónia, representada pelo núcleo colonizador, em entidade política soberana.6 Independência política que, é claro, não só não se apresenta como uma afronta à colonialidade inerente à sua sociedade como se trata de uma etapa «superior» de a organizar e defender. Em síntese, os colonos esforçam-se no sentido de tornar perene a sua presença e de integrar o seio das nações numa posição de igualdade – de serem uma «nação normal». Este último aspeto adquiriu particular importância com o consenso moral e diplomático de condenação do colonialismo que se foi afirmando no pós-Segunda Guerra Mundial.

Manuel Simões Vaz, fundador do «Notícias», o jornal mais antigo e de maior circulação em Moçambique, comemora o seu "aniversário de colono".

Com origens mais profundas, que não cabe aqui elaborar, mas em particular a partir da segunda metade da década de 1990, os estudos do colonialismo de povoamento [settler colonial studies] têm vindo a ser alvo de uma autonomização face aos estudos gerais do colonialismo. Partindo da conceção de que uma colónia é simultaneamente um corpo político dominado por agência exógena e uma entidade exógena que se reproduz a si mesma num determinado ambiente, e argumentando que o colonialismo de povoamento deve ser entendido como algo estruturalmente diferente, e muito mais que a mera adição, das migrações e do próprio colonialismo que o caracteriza, os defensores da autonomização científica do seu estudo vão argumentar que, embora o colonialismo e o colonialismo de povoamento coexistam e se definam reciprocamente, não se tratam do mesmo fenómeno, e merecem ser analisados de forma separada.7

É da nossa opinião que este campo de estudo, ainda jovem e com tanto por desbravar, em particular no que ao estudo político das sociedades coloniais portuguesas em África concerne, se apresenta como uma ferramenta epistemológica não só útil como imprescindível, hoje mais do que nunca. Desde a intensificação do genocídio em curso na Palestina à tentativa de redefinir os princípios do Te Tiriti o Waitangi [Tratado de Waitangi], que estabelece a relação do povo Maori com o Estado colonial de matriz europeia neozelandês, as dinâmicas expansionistas e eliminatórias do colonialismo de povoamento estão presentes de forma inequívoca no mundo contemporâneo. E é entender as investidas que, com enormes distâncias geográficas entre si, são feitas contra os povos originários, visando acelerar e aprofundar a sua despossessão, como um fenómeno global, que permite dar coesão e clareza ao nosso entendimento do mesmo. Sem as quais não há forma de o enfrentar.

Para dar corpo a esta proposta teórica, recorremos a um exemplo bem conhecido por alguns de nós: a vertiginosa morte do vendaval de esperanças que o estallido social chileno produziu. De facto, dos protestos de 2019 à rejeição referendada da Constituição proposta e redigida pela Convenção Constitucional em 2022 vão apenas 3 anos – mas nesse triénio aconteceram décadas. Em resposta à crescente contestação popular anti-neoliberal, que culminou na manifestação nacional denominada de la marcha más grande de Chile, com cerca de 3 milhões de chilenos nas ruas, foi convocado para o ano seguinte (2020) um plebiscito constitucional onde 78% dos votantes exigiram a redação de uma nova Constituição capaz de substituir aquela que a ditadura de Pinochet impôs em 1980. Pelo caminho, foi eleito para a presidência do país Gabriel Boric, que constituiu o executivo mais à esquerda desde a experiência da Unidad Popular liderada por Salvador Allende. Acresce ter ficado decidido no plebiscito constitucional que o país iria eleger uma Convenção para a redação da nova lei maior do país. Esta deveria contar com paridade de género e reservar 17 dos seus 155 lugares para representação dos 10 povos originários reconhecidos pelo Estado.

Também aqui a vitória da esquerda foi contundente, tendo a direita sido incapaz de eleger o terço de deputados necessários para deter poder de veto sobre o texto final.

A Constituição e o seu texto particularmente progressista esbarraram, no entanto, numa crescente rejeição social que culminou na sua derrota no referendo convocado para o efeito em 2022. A narrativa dominante sobre o assunto disseca a questão da seguinte maneira: o plebiscito de 2020 e a eleição para a Convenção Constitucional de 2021 contaram com uma elevada abstenção, tendo grande parte da direita sociológica do país permanecido em casa, preferindo assistir ao refluxo ideológico que os milhões de manifestantes nas ruas lhes impunham, através do televisor da sala de estar. O resultado foi um órgão constitutivo desligado da realidade nacional chilena. Incluindo-se por vezes a referência ao elevado número de deputados independentes eleitos, que ocupavam 65 dos 155 lugares, e que emanavam essencialmente dos movimentos sociais ditos «fraturantes». Ora, o referendo final contava já com voto obrigatório e, neste ponto determinante, o projeto maximalista que a esquerda confiantemente carregava não vingou. Nada do que foi aqui dito foge da verdade, mas há uma peça a faltar no puzzle.

Para a encontrarmos, é útil analisar o documento em questão, sobretudo a parte que ao debate em torno da «descolonização do país» concerne. A proposta de Constituição é inaugurada com um ambicioso preâmbulo que proclama: Nosotras y nosotros, el pueblo de Chile, conformado por diversas naciones, nos otorgamos libremente esta Constitución, acordada en un proceso participativo, paritario y democrático. Como bem sabemos da nossa própria realidade nacional, as declarações preambulares valem o que valem, e será fundamentalmente em torno dos artigos 1.º e 309.º do documento que o debate se irá centrar. Segundo a primeira alínea do artigo 1.º, o Chile passar-se-ia a autodefinir como un Estado social y democrático de derecho […] plurinacional, intercultural, regional y ecológico, já a primeira alínea do artigo 309.º afirmava que el Estado reconoce los sistemas jurídicos de los pueblos y naciones indígenas. A defesa da causa dos povos originários do país está, no entanto, presente por todo o documento: no artigo 5.º o Chile reconoce la coexistencia de diversos pueblos y naciones en el marco de la unidad del Estado, para no 12.º constatar que el Estado es plurilingue e no 234.º definir as autonomias territoriais indígenas. Nenhuma destas alterações foram concessões generosamente outorgadas pelo Estado chileno como esforço redentor pela brutal relação com os povos originários que pautou a história do país. Foi antes a intensa e criativa participação destes últimos em todo o processo de contestação social que conquistou «espaço de manobra» para fazerem avançar as suas pautas. Como pano de fundo sobre toda esta realidade, decorre ainda, e desde o final da década de 1990, um conflito armado de baixa intensidade entre o Estado chileno e o povo Mapuche na região da Araucanía, cuja importância não deve ser subestimada. 

Chegamos então ao cerne da questão: como foi possível uma tão acelerada inversão da dinâmica política? Quando dissecamos a popularidade das propostas de revisão do texto constitucional, e analisamos a natureza das mesmas, uma discrepância torna-se evidente, vejamos: o direito a um ambiente saudável, nos termos em que ficava enunciado, contava com a confortável taxa de aceitação de 64%, os artigos relativos aos direitos sociais de 56% e as propostas de democracia paritária em matéria de género de 53%; no canto inverso da tabela encontramos a natureza plurinacional do Estado, que enfrentava uma taxa de rejeição de 60% entre os inquiridos, e o reconhecimento dos sistemas de justiça indígenas, onde esta ascendia para os 64%.8 Ou seja, as propostas progressistas que respondiam aos anseios de uma maioria social cansada por décadas de imposição neoliberal e governos de centro-esquerda sem capacidade institucional de avançar com reformas significativas, encontravam uma clara base social de apoio. Já aquelas que procuravam articular os anseios e ambições da minoria da população que antecedia a própria existência do Estado – colocando pelo caminho o Chile no precipício de uma crise identitária – eram saudadas por uma dura e fria rejeição. 

Não será também por acaso que o processo de desprestígio da Convenção Constitucional, que passa de contar com a confiança de 51% dos inquiridos para apenas 30% entre agosto de 2021 e julho de 2022, se desenrola em paralelo ao ressurgir de popularidade dos Carabineros de Chile, que passam (no período que vai de janeiro a julho de 2022) de contar com a confiança de 41% para 57% dos inquiridos.9 Os Carabineros, além da sua participação fulcral na repressão política durante a ditadura de Pinochet (1973-1990), foram acusados de inúmeros crimes, inclusive de natureza sexual, no enfrentamento dos protestos iniciados em 2019. São entendidos por largos setores das sociedades indígenas como o braço mais brutal do «aparato colonial» que compõe o Estado chileno, e é amplo o movimento que procura a sua dissolução como polícia militar e a reorganização como polícia civil, ou a sua supressão como um todo. Que esta estrutura tenha recuperado a sua imagem pública, muito danificada pelos eventos dos anos anteriores, enquanto o órgão democrático com elevada representação indígena se encontrava crescentemente isolado social e politicamente, diz-nos algo muito evidente sobre a forma como estas propostas foram acolhidas e sobre a importância atribuída às mesmas.

A rejeição da plurinacionalidade como forma de organizar o Estado partia do pressuposto de que este já «pertencia» a todos e de que, mesmo estando o passado repleto de crimes e injustiças, tinha sido encaminhado pela «marcha da História» no sentido do cumprimento dos valores universalistas do Iluminismo. Da mesma forma, a rejeição do reconhecimento dos sistemas jurídicos dos povos originários era organizada em torno da valorização da uniformidade, eufemisticamente descrita como «igualdade de direitos e responsabilidades» dos chilenos. No ano seguinte, um referendo na Austrália que visava aprovar a criação de um mecanismo de representação para os povos Aborígenes australianos e nativos do Estreito de Torres no Parlamento e Governo do país redonda em mais um esforço fracassado. Também neste caso, o argumento dos seus opositores era o da defesa da uniformidade legal e a rejeição dos privilégios, ainda que corretivos de injustiças históricas.

Somos assim lembrados de como a entidade colona recorre a estratégias de sobrevivência divergentes, podendo impor políticas de inclusão ou exclusão para atingir os seus fins.10 Onde se sente ameaçado, pela insegurança em relação ao seu domínio demográfico do território colonizado ou pela capacidade de resistência militar da sociedade pré-existente, mais rapidamente o Estado colono aplica políticas de exclusão – encontramos um expoente das mesmas no apartheid sul-africano e na sua tentativa de organizar «estados» fantoche que eliminassem por completo a necessidade de representação política da população africana na república «branca» da África do Sul. Pode, por outro lado, acontecer a sociedade colona atingir um nível de maturidade e segurança, nomeadamente do ponto de vista demográfico – constituindo a população que descende dos colonos uma larga maioria social – que se apresente, como sendo instrumento de domínio mais vantajoso, a integração da população indígena sobrevivente e já não sua exclusão. Apesar da alusão progressista do termo, o propósito desta integração é, no entanto, o de «dissolver» o Indígena numa estrutura que não foi simplesmente construída por outros, mas contra si.

O mundo atravessa hoje, em ambos os seus hemisférios e todas as suas latitudes, um processo de crescente contestação às heranças da era do domínio colonial direto. Ainda que morto nesta sua forma mais evidente, ele sobrevive numa panóplia de manifestações económicas e sociais – a colonialidade. Os focos de contestação multiplicam-se: o movimento Land Back nos Estados Unidos da América; os governos de matriz indigenista do Movimiento al SocialismoInstrumento Político por la Soberanía de los Pueblos na Bolívia; a luta pela reforma agrária e o movimento Rhodes Must Fall na África do Sul; ou a luta contra o Marco Temporal no Brasil são apenas alguns exemplos. E é neste contexto que se inserem as contribuições dos estudos do colonialismo de povoamento. Lançar-se ousadamente contra as narrativas fundacionais das sociedades colonas – o mais sagrado dos quais é a ideia da «terra vazia», um encontro idealizado entre o colono e a natureza virgem de contacto humano – é um ato que nos impõe dialeticamente a reação negacionista dos herdeiros da dominação exógena. Mas a verdade é que as «history wars» foram, e são, importantes contributos para os debates sobre os passados dolorosos destas sociedades, nomeadamente no que concerne à revisão da história da relação colono-nativo, à recuperação da verdade sobre agência indígena e aos seus sucessos na resistência ao processo destitutivo que enfrentou.

E este não é um processo que se desenvolva selado numa redoma academicista, mas antes em profundo e profícuo contacto com a luta dos povos originários pela correção das injustiças históricas que lhes foram impostas. Nas palavras de Patrick Wolfe «I didn’t invent Settler Colonial Studies. Natives have been experts in the field for centuries».

Eduardo Esteves tem 23 anos. A tirar o mestrado em História na FCSH-UNL e a dar aulas na Amadora. Com (algum) sotaque do Porto e muito interesse em estudar sociedades coloniais. E sim, as brancas são verdadeiras.

1 Lorenzo Veracini, «“Settler Colonialism”: Career of a Concept,» The Journal of Imperial and Commonwealth History 41, no. 2 (2013): 313.
2  A. Grenfell Price, White Settlers in the Tropics (Nova Iorque: American Geographical Society, 1939).
3  Patrick Wolfe, «Settler Colonialism and the Elimination of the Native,» Journal of Genocide Research 8, no. 4 (2006): 388.
4  Theodor Herzl, Old-New Land [Altneuland, 1902], trans. Lotta Levensohn (New York: M. Wiener, 1941), 38.
5  Patrick Wolfe, Settler Colonialism and the Transformation of Anthropology: The Politics and Poetics of an Ethnographic Event (Londres: Burns & Oates, 1999), 1.
6 Fernando Tavares Pimenta, Brancos de Moçambique. Da oposição eleitoral ao salazarismo à descolonização (1945-1975) (Porto: Afrontamento, 2018), 13.
7  Lorenzo Veracini, Settler Colonialism: A Theoretical Overview (Basingstoke: Palgrave Macmillan, 2011).
8  BHP, Ipsos e Espacio Público, ¿Cómo vemos el proceso constituyente? Miradas a un Momento Histórico, Sexta entrega (Chile, julho de 2022), 28, https://espaciopublico.cl/wp-content/uploads/2022/08/Informe-sexta-entrega-V6.pdf.
9  BHP, Ipsos e Espacio Público, ¿Cómo vemos el proceso constituyente? Miradas a un Momento Histórico, Sexta entrega (Chile, julho de 2022), 34, https://espaciopublico.cl/wp-content/uploads/2022/08/Informe-sexta-entrega-V6.pdf.
10  S. Ben-Ephraim, «Do Unto Others as They Have Done Unto You: Explaining the Varying Tragic Outcomes of Settler Colonialism,» Settler Colonial Studies 5, no. 3 (2014): 237–238.