[...] For the master’s tools will never dismantle the master’s house. They may allow us temporarily to beat him at his own game, but they will never enable us to bring about genuine change.1
Para a construção de um feminismo plural que defende todas as mulheres, a verdadeira mudança tem de ser feita com a total ruptura da cultura e do discurso enraizados pelo universo hegemónico europeu, descendente do pensamento colonizador, criando algo completamente novo e com diferentes ferramentas. Tal não seria possível de outra forma.
Esse universo é determinado por um feminismo branco e burguês, defensor apenas dessas mesmas mulheres, suportado pelo capitalismo, pelo imperialismo e pela ideia de supremacia que impede a verdadeira e alargada visão do mundo plural que existe. Este feminismo, cunhado como «civilizacional» por Françoise Vergès, refere-se a «um pensamento único que contribui para a perpetuação de um domínio de classe, de género e de raça.»2
Assim, surge a urgência de ruptura com este pensamento: o feminismo decolonial. Assente na importância da aceitação e da visibilidade de todas as mulheres, percorrendo todas as lutas e combatendo toda e qualquer desigualdade, marcadamente anticolonial, anticapitalista e anti-racista.
O termo «decolonialidade» surge pela primeira vez com Catherine Walsh e, como citado em Um feminismo decolonial, a supressão da letra «s» em «descolonial» vem não apenas «desmantelar, desfazer ou reverter o colonial», mas também «assinalar e provocar um posicionamento – uma postura e atitude contínua – de transgredir, intervir, in-surgir e incidir.»3 E o movimento feminista decolonial surge em resposta a esse feminismo que coloca de parte todas as mulheres que não brancas, de uma classe que não a burguesa. Pois, «[n]ão é “branco” simplesmente por ser adoptado por mulheres brancas, mas por se referir a uma parte do mundo, a Europa, construída sobre uma partilha racializada do mundo. E é burguês por não atacar o capitalismo racial.»4
Muitas são as vozes, as lutas e as armas nestes movimentos, e a escrevivência é um dos terrenos férteis que permite um espaço de diálogo e de reflexão. É neste lugar que se encontra um potencial de construção de novos pensamentos, inclusivos e abertos a todas as mulheres.
A escrevivência é um termo cunhado pela escritora afro-brasileira Conceição Evaristo, marcado simultaneamente pela escrita testemunhal e ficcional. Na introdução de Becos da Memória (2017), a escritora explica como essa «é uma criação que pode ser lida como ficções da memória. E, como a memória esquece, surge a necessidade da invenção.» Todas as histórias são invenções apesar da sua verosimilhança histórica, e «Entre o acontecimento e a narração do fato, há um espaço em profundidade, é ali que explode a invenção.»5
Através desta escrita de vivências, encontramos os conceitos de feminismo e decolonialidade na sua prática, numa partilha de histórias, num discurso de resiliência das vozes marginalizadas. Enquanto resposta e reacção à perpetuação da estrutura do poder soberano após a descolonização, não tendo sido sinónimo do fim da submissão das que foram colocadas à margem, torna-se urgente a revolta contra esses ideais eurocêntricos de superioridade dos que ainda mandam. A escrevivência, enquanto discurso decolonial, procura ser disruptiva e desafiadora, retratando mulheres negras, faveladas, que pensam e sonham uma outra vida para elas, apenas possível para uma parte da população – a mesma que luta pelo feminismo civilizacional.
O que a escrevivência tem de único é também a sua presença na literatura negro-brasileira, escrita por população descendente e vinda de África, que se distingue da demais (daí a adição «negro») exactamente para denotar a luta e a centralidade desta presença, menosprezada ao lado do branco, e protagonizando aqui a mulher negra como mulher forte, que trabalha nos campos, que toma conta da casa, como criada, como mãe e como cuidadora. Aqui vemos também o conflito existente com o tal pensamento hegemónico e eurocêntrico da mulher branca como frágil, restrita ao espaço da sua casa.
Além de me ter levemente debruçado sobre Um feminismo decolonial para reflectir a importância da escrevivência, é em Olhos d’água, de Conceição Evaristo, que é possível ver as ferramentas desta luta a serem utilizadas.
Quinze estórias protagonizadas por figuras negras e marginalizadas, marcadas pela fome e pela violência. A experiência da miséria é universal, mas a esperança e a luta pela resistência é o que move estas personagens. A dor transforma-se em força e o medo em coragem, «[…]Se ao menos o medo me fizesse recuar; pelo contrário, avanço mais e mais na mesma proporção desse medo. É como se o medo fosse uma coragem ao contrário.»6 E aos poucos, lentamente, a luta vai sendo feita,
[…] Era preciso reinventar a vida, encontrar novos caminhos. Não sabia ainda como. Estava estudando, ensinava as crianças menores da favela, participava do grupo de jovens da Associação de Moradores e do Grêmio da Escola. Intuía que tudo era muito pouco. A luta devia ser maior ainda. […] O Sol passado de meio-dia estava colado no alto do céu. Raios de luz agrediam o asfalto. Mistérios coloridos, cacos de vidro – lixo talvez – brilhavam no chão.7
Conceição Evaristo, também ela vinda de uma favela, reconhece a resiliência nas figuras que retrata e, através da tradição oral já costumeira no universo africano no acto de partilhar histórias, é capaz de as aliar à sua própria voz literária e ficcional. Assim, a escritora é capaz de transformar os testemunhos marginalizados numa arma decolonial, contra o sistema imposto e ávida de emancipação.
Também em Quarto de despejo conseguimos encontrar esta força de esperança, este sonho de superação de uma desigualdade e de uma miséria atroz. Escrito por Carolina Maria de Jesus na segunda metade dos anos 50, a vida dos favelados é contrastada com a vida na cidade:
Quando eu vou na cidade tenho a impressão que estou no paraizo. Acho sublime ver aquelas mulheres e crianças tão bem vestidas. Tão diferentes da favela. As casas com seus vasos de flores e cores variadas. Aquelas paisagens há de encantar os olhos dos visitantes de São Paulo, que ignoram que a cidade mais afamada da America do Sul está enferma. Com as suas ulceras. As favelas.8
Carolina traz-nos um retrato pessoal da condição da mulher negra na favela. Acompanhamos os seus dias, que ela vai descrevendo quase que num fluxo de consciência, sem estilos pensados ou cuidados com a língua portuguesa. Apenas com dois anos de escolaridade e com o intuito de mostrar ao mundo a injustiça que vive e de que se vê rodeada, Carolina conta-nos dos seus dias, a comida que vai conseguindo apanhar do lixo para alimentar os filhos, a violência a que vai assistindo e a política que acompanha com olhar atento e sentido crítico. Neste seu diário de uma favelada, lemos dias difíceis, «Ontem comemos mal. E hoje pior»9, e momentos melhores, mais tranquilos, «Hoje eu estou alegre. Eu estou procurando aprender viver com espirito calmo. Acho que é porque estes dias eu tenho tido que comer.»10
Tal como na escrevivência de Conceição Evaristo encontramos o medo e o desânimo transformados na esperança para a luta, também é possível encontrá-los em Quarto de despejo. A certo momento, Carolina partilha que, em pequena, lia livros sobre a história do Brasil e apenas homens surgiam quando eram referidos grandes nomes lutadores e defensores do país. Carolina sonhava poder tornar-se um homem porque só assim seria capaz de se tornar protagonista de grandes feitos e revoluções. O mito poderia tornar real o seu desejo.11
Quando o arco-iris surgia eu ia correndo na sua direção. Mas o arco-iris estava sempre distanciando. Igual os politicos distante do povo. Eu cançava e sentava. Depois começava a chorar. Mas o povo não deve cançar. Não deve chorar. Deve lutar para melhorar o Brasil para os nossos filhos não sofrer o que estamos sofrendo. Eu voltava e dizia para a mamãe:
– O arco-iris foge de mim.12
Carolina, sabendo que não se tornaria homem por obras divinas, fez a sua luta escrevendo, partilhando com o mundo fora da favela como era a sua vida no quarto de despejo.
Assim se faz a escrevivência, através da força e da resiliência de figuras como a de Carolina e as que Conceição nos traz através das suas estórias. Sem nunca olvidar nem romantizar o passado e o presente marginalizados, a voz da luta acaba surgindo sempre com o poder da ruptura da submissão e a esperança num futuro mais igual para todas.
*A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.