[NÃO É EXATAMENTE UM GRÃO DE AREIA NA ENGRENAGEM]

6.1.2025
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Não, isso implicava que a máquina parasse de funcionar. Que os senhores que a controlam, de rosto anónimo e motivações duvidosas, fossem forçados a retirar-se de cena, incapazes de remover aquele grão da engrenagem, condenados a abandonar o local do crime e a sua profissão para todo o sempre. Não, a máquina não parou, esta máquina nunca para.

Não é exatamente um grão de areia na engrenagem, mas talvez seja um fantasma. Uma memória dos antepassados que relembra os contemporâneos – nós – de que não chegaram aqui sozinhos. Que, quando escavamos no sítio certo, ou errado, podemos tropeçar no insondável poço do passado. Talvez até cair nele e, se não formos cuidadosos, nunca mais regressar.

Não, não é um grão de areia. É uma lembrança. É isso – apenas uma lembrança. Um mero contratempo, rapidamente sanado para prosseguir a construção. Tudo pode avançar de acordo com o plano, como se nada tivesse acontecido. Foi apenas um percalço, um inconveniente. É encontrada uma alternativa para assegurar que aqui não moram dragões. Afinal de contas, esta máquina não para, ela nunca para. 

Mas. Mas – e se for mais do que um inconveniente? E se alguém, uma pessoa, decidir não apenas ver, mas olhar para o fantasma? E se, ao espreitar para o poço do passado, a pessoa pensar? E se tropeçar, e cair, e der de caras com ele, ou ela? E se os fantasmas falarem, para dizerem à pessoa que existiu um outro tempo, um tempo em que as coisas não funcionavam assim, no qual a construção não era uma inevitabilidade mas, apenas, uma necessidade? E se a pessoa que saltou e dialogou com o fantasma, que tropeçou no poço e de lá escapou, decidir contar-nos a sua história? E se nós a ouvirmos?

Os fantasmas andam por aí, sem dúvida. E estão aqui para nos assustar. Para nos relembrar de que existem outros tempos que não são este tempo, que não somos donos deste tempo nem de outros tempos, que a história não começou aqui e aqui não terminará. Ruínas romanas que emergem, inadvertidamente e sem autorização dos nossos contemporâneos, na construção de um novo condomínio perto de Yorkshire. Obras de drenagem que revelam um complexo de edifícios com mais de trezentos anos na Irlanda do Norte. Vestígios de descendentes de povos escravizados, quilombolas, descobertos na construção de uma estação de metro em São Paulo. Os escombros de uma fábrica de açúcar com quinhentos anos identificada no meio do mato de São Tomé, em pleno século vinte e um. Fantasmas, por todo o lado.

E se olharmos de frente para estes fantasmas, o que nos dizem eles? E se alguém saltar para o poço, e ouvir? E se cairmos em Yorkshire, na Irlanda, em São Paulo ou São Tomé? E se sairmos do poço, e falarmos?

Nos últimos dias do ano de 2024, uma «ponte em arco de volta perfeita, em alvenaria de pedra calcária, datada provavelmente do período medieval» emergiu no meio dos escombros, para espanto dos senhores que escavavam um túnel numa estação ferroviária em Coimbra. Será um inconveniente? O projeto, explicaram os donos da construção, «está atualmente em fase de alteração, de modo a compatibilizar esta estrutura com a preservação da ponte existente». O plano, dizem, será «inevitavelmente afetado». Um fantasma, talvez, vindo de outro tempo para nos contar as suas histórias, para interromper momentaneamente o nosso tempo da construção. Um susto, uma lembrança do passado que interrompe o presente. A ponte e os seus fantasmas, ansiosos para falarem connosco, há tantos séculos enterrados. Por momentos, paramos, e olhamos para eles. Alguém os ouve?

Não, não é exatamente um grão de areia na engrenagem. Não, isso implicava que a máquina parasse de funcionar para sempre, que víssemos os fantasmas, que falássemos com eles. Que contássemos a sua história, que mergulhássemos no poço do passado e que, ao submergir, gritássemos: este não é o nosso tempo. Que os senhores que constroem, em nome do desenvolvimento, do progresso, do lucro e do poder, arrumassem as botas e dessem espaço a outros tempos. Na notícia, lemos: «um contratempo». Foi, apenas, um contratempo. Não é um grão de areia, talvez uma lembrança. Um fantasma ignorado. Afinal de contas, a máquina não parou. Esta máquina nunca para.