[ETTY]

2.1.2025
Etty
Etty
Claro, é o extermínio total, mas suportemo-lo sobretudo com graciosidade

O que é uma enorme tragédia? Uma soma de milhões de pequenos horrores, de pais sem filhos e filhos sem pais, de amantes que nunca se reencontram, de histórias familiares sem mais ninguém que as recorde? O fim da memória, o rasgar do tecido que une seres humanos. A perseguição, a morte, o terror. O indescritível e o indizível acumulam-se até só sermos capazes de contar milhares, centenas de milhares, milhões. A avalanche dos números, das fotografias, dos vídeos, das histórias dos poucos que sobreviveram. Ampliamos o horror e encontramo-lo em redobrado: uma vila que desapareceu do mapa, uma família da qual não resta mais ninguém, uma vida arrancada do seu curso. O nome. Os nomes. Milhões de nomes. Demoraríamos 347 dias a dizer todos os seus seis milhões de nomes. Este ensaio é sobre um deles. É sobre a dignidade trágica do nome Etty Hillesum.

Etty morreu com com vinte e nove anos. Etty morreu com os sessenta mil judeus de Amesterdão que não sobreviveram a esses anos terríveis. Etty morreu com o milhão de judeus que, de origens e em tempos diferentes, viram a sua vida terminar na cidade polaca de Auschwitz. Os seus diários, escritos entre 1941-1943, depois da invasão dos Países Baixos e seguindo o agudizar do genocídio depois da Conferência de Wannsee, foram publicados apenas nos anos 80.

Ao ler, incrédula, as páginas de Etty, dei por mim esmagada por esta tragédia. Pensei que a sua enormidade talvez residisse exatamente nos milhões de detalhes que contém. Lembrei-me de ver a toalha de Paul Kuttner no Museu Judaico de Berlim, dobrada pela mãe – que viria a ser assassinada em Auschwitz – e nunca, até hoje, desdobrada pelo filho saudoso. Pensei, assim, na perda incomensurável para todos nós que nunca poderemos ler o romance que Etty tanto queria escrever. Senti dentro de mim a angústia de quem lê planos de vida maravilhosos de uma mente irrequieta e tão digna, sabendo que nunca os chegaria a concretizar. Que injusta é a tragédia. 

Há uma melodia única dentro de mim, que às vezes deseja imenso ser transposta em palavras próprias. Mas não gosto de descrevê-la pela sua morte apenas. Etty apaixonou-se e duvidou da sua paixão. Leu Dostoievski e Rilke freneticamente e desejava encontrar uma forma para as coisas que eram um caos dentro de si. Teve uma relação difícil com Deus e preocupou-se com a sua alma. Passou noites e manhãs a escrever sofregamente linhas de um diário maravilhoso, a pôr em papel o único vestígio que ficou de uma vida interior com tantas cores, formas e movimentos.

No meio de toda esta beleza dentro de si, suportou o genocídio com a superioridade de quem via no guarda nazi um homem triste, de quem se maravilhava com o céu azul enquanto aprisionada num gueto. Não só o suportou como procurou estender a sua mão a raparigas mais novas, a pessoas em situações piores que a sua.  As suas palavras, o seu espírito esperançoso e inquebrantável foi a prova derradeira do que escrevia em julho de 1942: eu não tenho a sensação de estar presa nas garras deles [...] pode ser que consigam arrasar-me fisicamente, mas mais que isso não. Mataram-na, é certo, mas parece-me impossível que a tenham aprisionado.

Se é verdade que a vida foi para Etty uma luta sedutora, foi igualmente marcada pelo desejo e a ambição de alcançar uma forma ideal para escrever o que sentia dentro de si, pela frustração com o sentir que levava de empréstimo tanto do mundo e das palavras sem conseguir formular o que gostava de lhe devolver, esse fluxo interminável que sentia fluir de si. Provavelmente terá morrido na expectativa de conseguir escrever essas palavras. Nunca senti particular desejo em falar com alguém do passado até ler este livro. Gostava de lhe dizer que conseguiu devolver ao mundo, nas suas palavras esplêndidas, tanto mais do que levou. Que escreveu textos perfeitos. Com a perfeição na descrição das suas dores de barriga, das saídas para ir comprar fruta, nos apontamentos sobre almoços e jantares e sobre excitação sexual. Etty mostra que a vida pode ser sempre maravilhosa e esperançosa, que esta irradia teimosamente pelas brechas do terror e da opressão, pelas ruas do gueto, pelas camaratas do campo de concentração. Saibamos encarar o que vem com a sua dignidade: Boa Noite. A vida vale tanto a pena ser vivida.