Em 1908, G. K. Chesterton trouxe-nos The Man Who Was Thursday – A Nightmare: uma ficção filosófica, política, satírica, intrigante. Um relato sobre polícias numa ávida busca pelo alvo a abater: anarquistas que procuram a completa destruição da sociedade estabelecida. Assim parece até claro: os polícias são bons e impõem a ordem, os anarquistas são maus e provocam o caos. Será mesmo assim? Ora não poderia ser tudo assim tão simples, não fosse o subtítulo ser um «pesadelo» e Chesterton um agitador de águas por excelência (por diversos e problemáticos motivos que, neste momento, não serão aqui discutidos).
Muito se poderia discutir sobre esta obra e, como bem me parece que falar dela, por pouco que seja, é incorrer numa infracção gravíssima denominada spoiler, focar-me-ei apenas por partilhar um momento das primeiras páginas do livro.
Eis as duas personagens mais relevantes: Syme é um detective poeta, «um mortal, com ar muito tímido (...), um poeta cumpridor da lei, um poeta de ordem, mais ainda, um poeta da respeitabilidade»1, cuja missão é desmantelar o Conselho dos Dias (um conselho anarquista constituído por sete membros, nomeados pelos dias da semana); Gregory é um poeta anarquista, «revolucionário de cabeleira vermelha»2, que aguarda ansiosamente tornar-se Quinta-Feira e instaurar um novo modus vivendi. Mal ele sabe.
Ambos se conhecem e conversam num jardim. A discussão é a possível incompatibilidade entre a arte e a anarquia. Ei-la:
[Gregory] Um artista é um anarquista. As duas palavras equivalem-se. Um anarquista é um artista. O homem que atira uma bomba é artista, porque prefere tudo a um momento culminante. Sente que o brilhar de uma chama e um belo estrondo valem muito mais que os corpos desfigurados de meros polícias. Um artista desrespeita todos os governos, suprime todas as convenções. Um poeta só na desordem se sente bem.3
[Syme] Que há de poético em ser-se revoltado? É como se dissesse que estar enjoado é poético. Adoecer é uma revolta. Há ocasiões em que tanto estar doente como estar revoltado é lógico, mas diabos me levem se percebo por que é isso poético. A revolta, em abstracto, é revoltante. É apenas um vómito. (...) Poético é as coisas correrem direitas. (...) Sim, a coisa mais poética, mais poética do que as flores, mais poética do que as estrelas, a coisa mais poética deste mundo, é não estar doente.4
Gregory apontou com a bengala para o candeeiro, depois para a árvore.
– Sobre isto e sobre aquilo. Acerca da ordem e acerca da anarquia. Ali está a sua preciosa ordem, aquele candeeiro de ferro, feio e estéril, e aqui está a anarquia, rica, viva, fértil; eis a anarquia, magnífica, em ouro e verde.
– No entanto – retorquiu Syme pacientemente – você, neste momento, vê a árvore porque o candeeiro a ilumina. Admirar-me-ia muito se conseguisse ver o candeeiro à luz da árvore.5
Nas analogias discutidas entre Gregory e Syme, a arte está para o estado das coisas como a árvore está para o candeeiro. Vejo a importância da segurança e do contentamento na ordem das coisas: útil para os intervalos, para dar a força e o tempo necessários para observar os danos da estagnação, da recusa da evolução e da luta. Que o que é «de ferro, feio e estéril» nos sirva de lição para o que queremos para todos: um mundo «rico, vivo e fértil».
A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.
1Chesterton, G. K., O Homem Que Era Quinta-Feira (Portugália Editora: 1973), 9.
2ibidem.
3ibid., 10.
4ibid., 11-12.
5ibid., 14-15.