[DAS CERTEZAS (PÓS) IDEOLÓGICAS DO CAPITALISMO TARDIO]

9.3.2025
They Live, John Carpenter (Alive Films, 1988)
They Live, John Carpenter (Alive Films, 1988)

Na última fase do seu pensamento, Ludwig Wittgenstein escreveu sobre o jogo de linguagem epistemológico dos conceitos de dúvida e de certeza. Na obra póstuma publicada com o título Da Certeza, Wittgenstein desenvolve uma leitura do funcionamento lógico dos processos epistémicos. A partir de uma crítica à possibilidade de responder ao problema da existência do mundo externo posto tal e qual como o cepticismo pede, Wittgenstein mostra como a própria questão céptica pressupõe uma confusão sobre o funcionamento da linguagem. Esta confusão reside na assimilação entre proposições empíricas, sujeitas a dúvida, e proposições gramaticais, tomadas como certas. É a partir da certeza que se pode gerar a dúvida, tendo as proposições gramaticais de permanecer inquestionáveis para as proposições empíricas poderem ser duvidadas e, por consequência, conhecidas. A partir deste entendimento, a dúvida céptica universal perde o seu sentido, uma vez que se torna logicamente impossível duvidar de todo o sistema de crenças ao mesmo tempo, podendo apenas duvidar, conhecer, partes do nosso sistema, alicerçadas em certezas que têm de permanecer fixas. As certezas dos nossos jogos de linguagem compõem a nossa mundivisão, de forma essencialmente prática. Para Wittgenstein, este sistema de crenças e maneiras de agir no mundo são o que constitui uma forma de vida. A linguagem nasce da materialidade do vivido. O conhecimento dá-se a partir dessas certezas.

A partir desta visão da linguagem, a crítica da ideologia proposta por Slavoj Žižek ainda ganha mais sentido: ideologia não é o conjunto de proposições conscientemente defendidas em prol de uma posição política, mas sim um conjunto de práticas e maneiras de pensar inconsciente que estrutura o nosso pensamento e a nossa própria forma de criticarmos a ideologia em que vivemos. Ideologia não é um par de óculos que podemos tirar, mas o próprio funcionamento dos nossos olhos. O que Žižek e Wittgenstein nos dão é a noção de que não podemos senão ter uma ideologia, uma forma de vida, um conjunto de certezas que estão directamente ligadas com a materialidade da nossa vida em comunidade e com o funcionamento estrutural do nosso inconsciente. A linguagem emerge a partir dessa relação prática: há uma origem material na ordem simbólica do significado. É neste ponto que Žižek e Wittgenstein se encontram para nos armar com poderosas ferramentas.

O trabalho crítico não pode, por isso, resumir-se à denúncia da mensagem exterior: existe uma dimensão de auto-crítica e de auto-reflexão necessárias para a verdadeira emancipação ideológica. O trabalho também passa por rearticular as nossas fantasias de saídas e soluções e reconhecê-las elas próprias como reflexos das amarras que pretendemos romper. Não são apenas as ordens directas do superego que revelam a ideologia dominante, mas sim o nosso gozo (jouissance) na forma como, ao rebelarmos contra elas, estamos ainda a reconhecê-las como Lei e jogando o seu próprio jogo. De certa forma, nós queremos que a ideologia dominante assim se mantenha porque precisamos de ocupar o lugar de crítica que já conhecemos e que está integrado como negação. O anti-sistema faz parte do próprio sistema. Se perdermos o referencial da autoridade que negamos, perdemos a nossa própria identidade. Existe um conforto em perpetuar a situação que nos permite manter uma distância crítica, sem sujar as mãos. Essa posição serve como garante da nossa própria identidade, estruturando a nossa relação com o Grande Outro, a ordem simbólica da realidade social. O nosso posicionamento simbólico é feito em função da nossa relação crítica com o poder. Para sermos capazes de afirmar uma ideologia diferente, temos de ser capazes de nos libertar da posição construída em função do alvo a combater.

Voltando ao léxico wittgensteiniano, o jogo de trazermos à superfície (à empiria) as proposições gramaticais, vai sempre pressupor uma outra certeza para ser lógica e semanticamente possível. A crítica ideológica será sempre (no sentido de necessidade formal) guiada por uma ideologia. A tarefa é aceitar esta condição estrutural e construir uma visão positiva mais forte, ontologicamente diferente do capitalismo tardio, que recuse as certezas gramaticais que empurram a esquerda para um lugar marginal na luta pelo poder. Abandonar o conforto da crítica já pré-concebida implica o confronto com o falhanço do socialismo real, partindo da certeza de que este sistema também se tornou impossível. O antagonismo entre o capitalismo e a democracia tornou-se insuportável e o liberalismo falhou de vez na sua missão histórica. Cabe à esquerda, como conjunto de forças que recusa uma visão de sociedade guiada apenas pela engrenagem do capital, construir uma leitura e explicação da ordem simbólica que dê de novo esperança aos milhões de pessoas que sobrevivem sufocadas pelos mercados. Essa construção é necessariamente um novo tecido gramatical, um novo conjunto de práticas que procure construir uma nova forma de vida conceptual a partir da materialidade do mundo político de hoje. Um novo leito do rio que parta de um entendimento não simplesmente contrário ao capitalismo tardio, mas fundamentalmente diferente, com uma direcção própria e guiado pelos seus próprios pressupostos. Ao puxar a nossa atenção para a mobilidade de proposições e no carácter situacional e funcional dos jogos de linguagem, Wittgenstein abre a porta (teórica) para a possibilidade de construirmos novos mapas conceptuais da realidade social e política. Com novas práticas emergem novas codificações na linguagem e, com isso, a necessidade de actualizações no mapeamento das ideias que constituem o horizonte ideológico de cada momento histórico.

«No século XX tentámos mudar o mundo muito rapidamente. Agora é altura de o reinterpretar»1, diz-nos Žižek. Sejamos, então, os geógrafos do nosso tempo. Refundemos as bases da nossa crítica na afirmação de um caminho diferente, que redima os fantasmas do passado, aprendendo com os erros. Reconstruamos os projectos utópicos a partir da distopia do presente. Recuperar a ligação com a realidade das pessoas, não a partir da intelligentsia do passado, mas a partir da miséria do quotidiano. Encontrar as certezas que bloqueiam formas de acção e pensamento que rompam com a ordem. Os populismos florescem onde faltam explicações, oferecendo falsas vias rápidas para problemas reais. A tarefa de todos os que recusam a bandeira do lucro tem de ser recuperar esse papel, reagrupar as lutas em torno do antagonismo central de todos os que foram postos de fora. Há que ter a drive platónica para sair e voltar à caverna.

*O autor escreve segundo o Acordo Ortográfico de 1945.

Ricardo N. Henriques é doutorado em Filosofia, no ramo de História da Filosofia, pela Universidade Nova de Lisboa. Gosta de videojogos, futebol e política.

1«Don't Act. Just Think.» Big Think. https://bigthink.com/videos/dont-act-just-think/