Levanto a mão, estremunhada, para silenciar o despertador que toca para me acordar todos os dias às 8:30h. Corro até ficar sem ar para a paragem do metro e percebo que o perdi por poucos segundos. A ansiedade toma conta de mim ao contar os minutos que perdi de trabalho. Sinto o desespero a crescer dentro de mim quando olho para o relógio que nunca se cansa e constato que as horas passaram e eu ainda não acabei de escrever este texto. O calendário é implacável: reuniões, compromissos, prazos, rendas para pagar a tempo e tempo livre – material raro – para ser cuidadosamente gerido. Escrevo sobre o peso desta temporalidade porque a sinto em mim.
Mark Fisher, no livro Ghosts of My Life, menciona que, há cerca de dez anos, começou um blog como forma de externalizar a negatividade e tristeza que sentia dentro de si e de reforçar a ideia de que o problema não era seu – num sentido individualizante – mas do capitalismo que geraria uma cultura de desolação.1 Escrever para outros lerem é sempre um exercício de externalização e de oferta de um gesto de entendimento ao outro. Neste caso, é uma tentativa de traçar um esboço (talvez) antropológico de um presente frenético e esmagador e de um futuro esquivo. Conhecemos o famoso axioma gramsciano «pessimismo do intelecto, otimismo da vontade».2 Pensei, ao escrever este texto, que refletir sobre tempo sob o capitalismo é um exercício pessimista, correndo até o risco de se tornar num manifesto de uma certa «impotência reflexiva».3 O intelecto e a vontade imobilizam-se. Ao mesmo tempo, ao escrever, reparo que falo para alguém. Reparo que penso e que incito alguém à ação. Não será este exercício inerentemente otimista? Espero que alguém mais, ao ler, sinta que não está sozinho na sua luta contra o tempo (literalmente). E, por isso, gosto de pensar que o nosso trabalho (incerta de quem é este nós que emprego) é o de manter vivo não só o otimismo da vontade mas também o otimismo do intelecto4 – esta ideia de que se já derrotámos tantos gigantes, com certeza também este se desmanchará no ar. O futuro fugiu-nos. Parece que sim. Parece que o largámos algures (ou nenhures) e que ele cavalgou para bem longe do horizonte das experiências das nossas vidas. Diz-nos Daniel Bensaïd que começamos este século com menos esperança do que nossos antepassados começaram o anterior.5 Nenhum espectro promissor nos parece assombrar. O futuro foi lentamente cancelado e as nossas expectativas coletivas foram-se esvaziando tristemente.6 O «realismo capitalista» naturalizou-se dizendo-nos que as coisas podem ser más, mas pelo menos não são piores.7 A força da metáfora de Walter Benjamin persiste: será que nos parecemos com o Angelus Novus que olha aterrorizado e fixado para o passado enquanto avança, empurrado, em direção a um futuro incerto?8 Falo deste futuro não como o tempo mecânico que inevitavelmente se mexe, mas como a ideia de porvir, do tempo da mudança e da expectativa que a carrega. Numa tarefa etnográfica, podemos procurar afincadamente traços do futuro no presente que habitamos. Que ideias de futuro estão impressas nas nossas práticas, subjetividades e vivências quotidianas? Observamos a vida que nos rodeia.
Olho em redor – para mim, para os amigos, a família, as notícias e as conversas quotidianas – e saltam-me à vista três ideias de futuro e nenhuma delas realmente o é. Reconheço-as em livros e artigos que enformam a minha visão do mundo. Uma: futuro é técnica, previsão e cálculo. Ligamos os noticiários para saber de subidas e descidas de taxas e impostos que preveem exatamente quanto vamos ganhar em cinco anos, ouvimos aqueles que traçam planos a dez e a vinte anos confiando que nada vai estruturalmente mudar, repetem-nos números sobre a ausência ou a evidência do crescimento económico neste ano e prevendo o do próximo. O futuro é transformado numa previsão econométrica ou técnica, numa medida de suposto crescimento9 e numa matéria de especialistas da economia, da gestão e da tecnologia.10 Somos demasiado simples para perceber o que aí vem, é melhor que nos abstenhamos de tentar perceber ou, pior, de tentar alterar o seu rumo. Se não seguirmos as indicações dos tecnocratas corremos o risco da crise, da catástrofe. A esta forma de encarar o futuro Arujun Appadurai chama de «ética da probabilidade», remetendo para a ideia foucaultiana dos perigosos da capilaridade dos regimes modernos de contabilidade e contagens.11 Duas: o futuro é para se temer. Esta ideia parece estar entranhada até à mais ínfima parte de nós, dos pequenos contratempos aos enormes obstáculos. Este futuro que atemoriza é feito de prazos e pagamentos: a renda para ser paga até dia oito de cada mês, o salário que se recebe a dia trinta (e nunca mais chega o próximo dia trinta) e o prazo para o pagamento do cartão de crédito aperta.
Este tempo que nos desespera e nos mergulha em estados de intensa ansiedade é igualmente o das crises que surgem sem parar – como se se tratassem de um ciclo natural e incontornável – e que são sempre culpa nossa. Olho para os meus amigos: crescemos e atingimos a adolescência com a Crise das Dívidas Soberanas, chegamos à vida adulta com uma pandemia e uma crise que se lhe seguiu e queremos emancipar-nos enquanto a crise da especulação imobiliária nos rasteira e os preços correm à nossa frente. Este futuro de medo é também produto do capitalismo e da economia da catástrofe permanente,12 da guerra como condição incontornável e ecoansiedade que nos atormenta.
Temos medo do futuro porque sabemos que quando algo muda, raramente parece ser para o melhor. Três: o futuro é repetição. Zygmunt Bauman aponta a ideia de «retrotopia» que dita que, face a um medo generalizado do futuro, parece julgar preferível olhar para o passado, transformado em objeto fetiche dos tempos do capitalismo tardio.13 Mark Fisher parece ecoar perfeitamente esta ideia quando descreve a ausência de novos estilos musicais e a estagnação criativa do início dos anos 2000.14 Se é verdade que os autores o descrevem, nós também o vemos. Nos filmes de sequelas e prequelas sempre repetidas, nos estilos vintage e de décadas passadas que parecem reciclar-se ad nauseam, na expectativa gorada por uma coisa que mude tudo que nunca chega. Temos novos telefones, aplicações e carros a um ritmo mais acelerado do que conseguimos acompanhar. Mas, mesmo assim, algo fundamental que parece sempre repetido, com um sabor cansado e uma cor esbatida.
Nada disto me parece ser esse futuro do porvir, das expectativas e da coisa nova. É uma passagem do tempo que nunca sai do sítio. Por isso me parece tão pertinente a expressão: presentismo.15 Vivemos mergulhados neste presente gigante, pesado, imenso. Tempo frenético e alucinante que gira furiosamente em torno de si mesmo sem nunca sair do sítio mas deixando quem transporta enjoado e zonzo. Sobre reprodução simples, Marx sublinha que o processo de produção capitalista exige o «fluxo constante da sua renovação».16 Nesta ideia de reprodução social incessante, vejo a náusea temporal em que vivemos mergulhados, deste tempo homogéneo e abstrato da produção que nos empurra para ciclos infinitos que nunca saem do mesmo sítio.17 O futuro parece eclipsar-se por detrás da acumulação infinita e da reprodução dos processos que a garantem – pintados como condição natural e necessária ao bem-estar comum. Reconheço neste pesado e repetitivo presentismo ideias da Sociedade do Espetáculo de Debord. Ao ler as suas páginas, com um agudo sentido de previsão do que viria depois, não consigo deixar de imaginar ecrãs a ligar e a desligar, o constante som de notificações e de aparelhos eletrónicos. Como se o estímulo constante do espetáculo – a forma aprimorada da alienação18 – dos ecrãs acentuasse a sensação de delírio repetitivo do presentismo.
Talvez quem esteja a ler esteja também já zonzo. Tempo, capitalismo, repetição, espetáculos, crise, tragédia. Paremos: não nos deixemos cair nesses «humor vulgares e banais de pessimismo».19 Algo aqui parece óbvio: as nossas expectativas e esperanças face ao futuro são culturalmente formuladas.20 Somos constantemente limitados por ideias do que é possível, realista, plausível. Assim, no meio de toda esta vertigem quase insuperável, restar-nos-á recuperar as éticas da possibilidade: «formas de pensar, sentir e agir que aumentam os horizontes da esperança e expandem o campo da imaginação».21 Esta definição de Appadurai surge-me como verdadeiramente inspiradora. O antropólogo sugere precisamente a procura por uma energia coletiva e criativa que permita superar o presente avassalador.
Alain Badiou define política como «ação coletiva organizada [...] com vistas a desenvolver no real as consequências de uma nova possibilidade reprimida pelo estado dominante das coisas».22 Gosto desta definição para a nossa política. Por uma ação coletiva que seja mais do que o cálculo administrativo do presente e que procure uma superação absoluta deste tempo. Interessa-me pensar nesta criatividade coletiva que podemos construir na vida quotidiana, na ideia de que a resistência e a contra-hegemonia são tarefas do dia-a-dia e, sobretudo, da ideia de que uma revolução chegará num dia como qualquer outro.
Empreguei acima a palavra com a qual quero terminar este ensaio: Revolução. Com R maiúsculo ou minúsculo, ela é o ato criativo máximo. Ela não cai do céu aos trambolhões, mas ferve em lume brando durante tempos e tempos, latente nas pequenas resistências. A Revolução é a desarrumação das regras, o horizonte da esperança que abrimos com os movimentos dos nossos ombros, a figura cujos contornos deixam de ser nítidos porque todas as linhas saem para fora. Mesmo ao envelhecer, a palavra persiste atemorizando aqueles que a querem domesticada, longínqua, como um delírio juvenil irrepetível. Mas ela tem o dom do eterno rejuvenescimento. Ela é aquela ideia que nunca vai embora, a sua voz – ora baixinha, ora estridente – ecoa sempre ali no fundo da nossa nuca, onde escondemos as nossas esperanças. Ela é o assalto aos céus, a terra que treme, o dia inicial, a porta aberta, o triângulo vermelho que derrota o círculo branco. Na sua imagem mais recorrente, ela é a locomotiva da história.
Nesta imagem marxiana poderosa surge-nos o ato que causa disrupções e erupções no tempo do capital e da produção. O ato que desregula os relógios e calendários. De acordo com Marx, a Revolução e a emancipação total seria a emancipação humana do tempo.23 Viver sem este tempo seria a concretização da liberdade, a vida sem ansiedade e fadiga.24 O tempo liberto e a recuperação da vida seriam a negação última do tempo capitalista e a verdadeira medida social da riqueza. Queremos o nosso tempo de volta. Não as folgas, o lazer ou os feriados. O tempo todo. Os humanos são fazedores de futuro.25 Façamo-lo então.
Gosto da imagem do relógio derretido no quadro surrealista da Persistência da Memória. Não quero pertencer a uma geração que nasceu depois da história, quero desobedecer a este regime de temporalidade.26 Temos de encontrar novas gramáticas, formas e cores para a Revolução que queremos fazer. Num concerto de Ano Novo (Gramsci teria muito a dizer sobre isto) em 1977, em Nova Iorque, Patti Smith usava uma camisola que dizia «Fuck the Clock». É assim mesmo que quero terminar este texto. Sem mais considerações teóricas e com uma nota de esperança. Fuck the Clock! Não temos nada a perder senão as nossas correntes.