[AMBIENTALISMO INGÉNUO]

25.1.2025
Primeira imagem a cores da Terra, um foto-mosaico de 140 fotografias, capturadas a uma altitude de 100 milhas
Primeira imagem a cores da Terra, um foto-mosaico de 140 fotografias, capturadas a uma altitude de 100 milhas. É possível observar uma tempestade tropical sobre o Texas, despertando o interesse científico no potencial da observação meteorológica de elevadas altitudes. 5 de outubro de 1954, US Naval Research Laboratory

«2024 foi o ano mais quente de sempre e o primeiro a ultrapassar os 1.5ºC de aquecimento global acima dos níveis pré-industriais.» Esta será a frase inicial mais comum dos artigos na secção «ambiental» de qualquer jornal. Os artigos irão invariavelmente prosseguir no seguinte molde: «Consagrado no Acordo de Paris, este valor tinha sido estabelecido como o limite máximo de aquecimento antropogénico, resultado das emissões de gases de efeito estufa, com vista a evitar os impactos mais perigosos destas alterações climáticas.» Numa Terra muito mais quente, os impactos na qualidade da vida humana são indescritivelmente severos. Poderia começar a enunciar as consequências – secas extremas, fomes, chuvas diluviais, ondas de calor, fogos florestais, extinção em massa – numa tentativa de acordar a nossa consciência ecológica dormente, mas tal estratégia batida tem se demonstrado inútil. Como explicar que numa época em que a realidade e gravidade das alterações climáticas são reconhecidas pela maioria da sociedade, todavia a degradação ambiental persiste? Aliás, paradoxalmente, a intensidade da degradação da natureza parece crescer em proporção direta com a nossa consciencialização ambiental. O que leva a esta incapacidade da sociedade perante a auto-transformação consciente? Não tenciono fornecer todas as respostas a estas perguntas, quanto mais num texto tão curto. Tenho apenas o objetivo de desmistificar alguns aspetos da relação contemporânea entre a natureza e a sociedade, e daí extrair considerações sobre os movimentos ambientalistas. Para aqueles com pressa, resumo agora os meus pensamentos: As condições materiais e históricas que permitem o nosso conhecimento científico do clima estão fortemente interligadas com as tecnologias e práticas que alteram fisicamente o clima. De tal forma que o conhecimento científico não pode ser invocado acriticamente como um critério puro e externo contra o qual a sociedade pode ser avaliada. Infelizmente, essa é a forma que muita contestação ambientalista assume. Ao julgar-se estritamente oposto aos processos de destruição ecológica, o ambientalismo não reconhece as suas origens nesses mesmos processos e, pelo caminho, mistifica a ciência e arrisca ser engolido por aquilo que pretende opor. 

As origens históricas do conhecimento do clima

A expansão imperial da segunda metade do século XX e início do século XXI foi impulsionada pelos constrangimentos do capital e possibilitada pelas novas invenções tecnológicas do capital durante a Segunda Revolução Industrial. 

As melhorias na eficiência de motores a combustão e no fabrico de materiais possibilitou a construção em escalas monumentais de caminhos férreos bem como navios comerciais e militares, tecnologias cruciais na expansão imperial, e consequente integração de territórios e economias isoladas no sistema global de capital industrial. O imperialismo industrial não só resultou num enorme aumento da queima de combustíveis fósseis, consumidos pelos comboios, navios e fábricas, como também escancarou a Terra, transformando a Natureza em «recursos naturais». Paradoxalmente, os enormes ganhos em eficiência energética resultaram precisamente num aumento descomunal do consumo de carvão – uma lição a reter para o presente.

The Rhodes Colossus: cartoon satírico que mostra o magnata de minas, administrador colonial britânico e fundador do território da Rodésia, Cecil Rhodes, a estender-se sobre África e a segurar a sua ferramente de dominação colonial - a linha telegráfica.

A invenção do telégrafo, e mais tarde do rádio e telefone, também marca o desenvolvimento do capitalismo industrial e imperialista. A capacidade de comunicar instantaneamente a longas distâncias assegura o controlo da metrópole sobre os territórios coloniais. A coesão territorial das colónias e a sua subordinação à metrópole não foi alcançada por traços num mapa estabelecidos na Conferência de Berlim nem, em última instância, por soldados no terreno — África, Ásia e a Índia são demasiado vastos para qualquer controlo humano: a tecnologia é que administra, domina e controla. 

A conexão telegráfica entre a Índia e Londres foi estabelecida após a Rebelião Indiana de 1857 contra o domínio da Companhia das Índias Orientais. A mensagem de alerta demorou quarenta dias a chegar a Londres, atrasando a resposta e ameaçando a perda do controlo britânico da região. Com efeito, foi a linha telegráfica intracontinental já montada que, de acordo com o administrador colonial Robert Montgomery, «salvou a Índia» ao permitir que os quartéis de diferentes regiões comunicassem a tempo de travar a escalada da rebelião. Mas isso não satisfez a coroa britânica, que assumiu o controlo do Raj, retirando-o das mãos da Companhia. Os britânicos aplicaram em África a experiência adquirida na Índia: reparemos no que Cecil Rhodes segura nas mãos ao mesmo tempo que estende as suas pernas entre Cairo e Cabo — a linha telegráfica.

A industrialização, a expansão imperialista, o crescente consumo de combustíveis fósseis e o desenvolvimento de tecnologias de comunicação constituem o desenrolar do mesmo processo histórico. A criação de redes de comunicação instantânea e uniformizada de acordo com padrões internacionais, motivada pela globalização económica e expansão imperial, torna-se simultaneamente a condição da possibilidade da comunicação científica de uma visão global do clima. As milhares de estações meteorológicas espalhadas pelo globo devem a sua existência aos impérios e ao capital que as construíram e interligaram através do comboio, telégrafo, rádio e, mais tarde,satélite e fibra ótica. Sem estas estações, e os dados que elas recolhem e distribuem, não é possível uma visão planetária do clima e, consequentemente, a atual consciência ambiental. Importante notar que os dados científicos não eram o único, nem o principal, conteúdo das mensagens que atravessavam estes fios. A esmagadora maioria continha informações sobre o mais recente valor das ações das companhias, precisamente daquelas que faziam uso das tecnologias que, em retrospetiva, viriam a exercer o maior impacto no clima. 

Sem a industrialização não há consciência ambiental. Primeiro, por uma razão talvez trivial: a degradação natural fruto da industrialização é o que motiva a consciência ambiental; a consciência é sempre uma consciência de algo; a industrialização e degradação ambiental são o objeto desta consciência, aquilo que ela opõe; sem destruição ambiental não faz sentido falar de uma consciência ambiental, pois seria uma consciência vazia. Em segundo lugar, e provavelmente menos trivial: as condições materiais, históricas e conceptuais da ciência climática e a visão global do clima que destas depende são as mesmas que reproduzem o metabolismo carbónico da economia capitalista global e consequente destruição ambiental. Sem estas condições, seria uma consciência ambiental cega, sem nada a que se agarrar.  As condições históricas da consciência ambiental são simultaneamente as condições materiais da destruição ambiental.

Tecnologias do conhecimento

O ser humano não está naturalmente equipado com sentidos capazes de apreender diretamente objetos complexos como o clima terrestre. Para tal, fazemos uso de tecnologias que nos oferecem uma visão sinóptica e mediada destes. Desde satélites na exosfera, às colunas de gelo profundo do Ártico, até aos milhares de estações meteorológicas que pontilham o globo — todas contribuem para a sintetização do nosso conhecimento do clima terrestre. Esta mediação tecnológica, ao mesmo tempo que desvenda, necessariamente também pré-constrói as possíveis conceptualizações do clima. Tal como os nossos olhos estão delimitados na sua capacidade recetiva a apenas uma fração do espectro eletromagnético – não conseguimos através deles percecionar, por exemplo, ondas de rádio – e permitem-nos ver apenas objetos que interagem com luz, os aparelhos de medição científica também estão condicionados na sua apreensão da realidade empírica. Os nossos sentidos naturais foram determinados pela história evolutiva da nossa espécie que, através da seleção natural, se adaptou ao seu ambiente. A nossa constituição atual revela as marcas deixadas pelas diferentes adversidades que os nossos antepassados distantes atravessaram. Além disso, a vida na Terra também é um agente ativo que continuamente a modifica em seu proveito. 

Analogamente, o desenvolvimento da tecnologia evidencia as marcas deixadas pelo contexto histórico em que emergiu e pelos desafios perante os quais esta foi concebida — se o telégrafo intercontinental foi desenvolvido num contexto de imperialismo industrial com vista à dominação territorial e consolidação de capital financeiro, esse contexto incipiente não pode ser ignorado quando o telégrafo é usado para comunicar as mais recentes medições meteorológicas à metrópole ocidental. Os satélites que nos permitiram pela primeira vez ver a Terra «de cima» e observar os fenómenos meteorológicos à larga escala foram desenvolvidos pelos complexos industriais-militares  durante os confrontos tecno-políticos da Guerra Fria. Com o propósito inicial de observar e administrar político-economicamente a totalidade do globo, durante a Grande Aceleração industrial do pós-guerra, os satélites e enormes infraestruturas computacionais que os suportavam foram cruciais para a construção da nossa atual visão global do clima. É fácil de nos esquecermos que por detrás dos dados, gráficos, mapas e previsões climatéricas encontramos uma vasta infraestrutura material que requer construção, manutenção, e uniformização internacional. Por exemplo, o novo data centre em Sines, motivado pelo crescimento exponencial do fluxo do mais recente recurso do capitalismo – informação computacional, estimulado pela «inteligência artificial» – albergará o processamento de dados geradores de valor económico (e emissões carbónicas) e, simultaneamente, dos dados climatéricos. Pelo caminho, enquanto processa os dados necessários às previsões climáticas, o data centre, através dos seus astronómicos requisitos energéticos, contribui para esse mesmo processo de alteração climática, cujos modelos climáticos nele concebidos estudam. As tecnologias que são usadas para conhecer cientificamente as alterações do clima possuem a mesma origem e, em vários casos, coincidem com aquelas que alteram a Terra. 

As falhas do ambientalismo

É neste contexto que discutimos o movimento ambientalista, que reiteradamente invoca a «voz da ciência» como o padrão contra o qual a sociedade deve ser avaliada. 

Não haja dúvidas: a produção desenfreada e irracional característica do capitalismo, que não tem outro objetivo senão a auto-expansão do capital, é responsável por alterações catastróficas à ecologia terrestre, que ameaçam impossibilitar a vida humana na Terra. Estas alterações constituem uma agressão sistematizada a uma escala global e historicamente singular no seu modo. Em vista disso, uma crítica ambiental ao atual modo de produção é indubitavelmente necessária e urgente. E são os movimentos ambientalistas existentes que se encontram nas frentes de batalha mais agudas. No entanto, esta crítica tem de reconhecer as origens do conhecimento científico no qual se fundamenta.

Atualmente, a crítica ambientalista assume genericamente a seguinte fórmula: primeiro, há um consenso científico sobre a incompatibilidade entre as existentes alterações do ambiente natural e a continuidade da vida na Terra como a conhecemos. Segundo, é a atual configuração da sociedade que é responsável por estas alterações. Logo, a sociedade tem de ser alterada rapidamente. O argumento é aparentemente válido e convincente. Contudo, neste argumento figura implicitamente uma concepção ingénua e errada sobre a relação entre a ciência e a sociedade.

O conhecimento científico é um produto cultural imanente a ser analisado e criticado, e não um árbitro neutro que transcende a sociedade, e que como tal conseguiria impor critérios ideais contra os quais a poderíamos avaliar. A ciência não paira sobre sociedade e a contempla a partir das alturas rarefeitas da estratosfera; a ciência emerge e move-se no seio claustrofóbico da História. As imagens de satélite do nosso pequeno planeta azul fomentaram essa ilusão de que tínhamos finalmente escapado desta condição. De mão dada com a ciência e a tecnologia, a Humanidade iria entrar numa era pós-histórica, em que todas as questões históricas, políticas e éticas seriam convertidas em problemas técnicos. Nenhuma tecnologia irá «resolver» as alterações climáticas porque estas não são um problema técnico, mas sim humano. 

A crítica ambientalista da sociedade não pode estabelecer-se nestas fundações ilusórias que pretendem transcender a situação histórica de onde emanaram. Tal crítica é simplesmente impossível. Qualquer crítica social parte necessariamente de dentro da própria sociedade, e carrega consigo as mesmas marcas daquilo que pretende criticar. O ambientalismo não pode postular-se como externo e puramente oposto à destruição ambiental, uma vez que o conhecimento que usa para estabelecer os seus objetivos está intimamente dependente e historicamente interligado com os processos responsáveis por esta destruição. 

Quando «os prazos ditados pela ciência» ditam que Portugal tem que cortar as suas emissões em 90% e alcançar a «neutralidade carbónica» até 2030, estamos perante factos corretos. E segundo o critério destes factos corretos, a sociedade portuguesa está a falhar. Ou seja, a sociedade no seu aspeto científico avalia-se a si mesma negativamente, no seu aspeto produtivo, segundo o critério científico. De dentro da mesma sociedade, emergem dois aspetos que, de acordo com um critério interno, são contraditórios. Os planos atuais de descarbonização da economia são uma tentativa de neutralizar esta contradição, tornando o modo de produção capitalista compatível com baixas emissões – a economia «verde». Destes planos emerge a noção de «neutralidade carbónica», em que as emissões são igualizadas com as absorções de gases efeito estufa (GEE). Daí surge naturalmente a ideia de que o modo de produção pode continuar intacto, desde que sejam desenvolvidas as tecnologias necessárias à absorção de carbono à escala industrial. Como o desenvolvimento tecnológico ocorre internamente ao processo de produção capitalista, a tarefa de descarbonização é devolvida ao mesmo modo de produção que emite, permitindo a extração de lucro em ambos os extremos do ciclo carbónico. É assim evidente a forma como a oposição ambientalista é facilmente absorvida pelo sistema que esta critica. Além disso, se a relação natureza-sociedade se resume a um balanço numérico entre emissões e absorções de GEE, então a gestão maximizante de florestas para a sequestração de carbono, e outras tecnologias de alteração da natureza conhecidas como «geoengenharia», são legítimas na medida em que promovem a famosa «neutralidade carbónica». Muitos movimentos ambientalistas rejeitam estas soluções tecnológicas, mas com base em que critério? Frequentemente acusam estas tecnologias de ainda não  terem sido «cientificamente» comprovadas. Mas o que acontecerá quando inevitavelmente forem? Qual será a resposta ambientalista? Resignação irracional? Tornar-se-ão nos Velhos do Restelo do novo milénio? 

A partir do momento em que aceitamos acriticamente as premissas conceptuais da ciência ambiental contemporânea, vemo-nos vinculados a uma linha de inferências que levam inexoravelmente à financeirização da natureza, comercialização do carbono e à geoengenharia. Se rejeitarmos esta conclusão, seremos irracionais. Este é o risco que os movimentos ambientalistas enfrentam: encontrarem-se num cruzamento, em que aparentemente as únicas opções são capitularem aos planos de gestão hiper-racional tecnocientífica da natureza avançada pelo capital «verde», ou enfrentarem o irracionalismo utópico e colapsarem sobre o seu próprio peso. De qualquer forma, o resultado é a redução dos movimentos ambientalistas à completa irrelevância – uma emanação histórica da consciência coletiva que não teve a capacidade de se agarrar às contradições que a originaram, tendo optado pela ilusória identidade entre os seus conceitos e a realidade, e ficado aprisionada na sua imediação com as condições objetivas da degradação ambiental, as mesmas condições que estão na origem e reprodução desta própria consciência. 

A tese do Antropoceno, adotada por muitos ambientalistas, postula o Humano como o atual fator determinante do desenrolar dos processos geo-atmosféricos, de magnitude equivalente a uma força geológica como o próprio movimento das placas tectónicas ou a queda do meteorito no final do período Cretáceo. A ideia do Antropoceno é incapaz de elucidar a divergência entre a consciência ambiental generalizada na população, o nosso suposto controlo tecnológico do meio natural e, por outro lado, a nossa aparente impotência de transformar a sociedade de acordo com as diretivas desta consciência ambiental. 

A falha principal da consciência ambiental contemporânea não se situa na hiperbolização da intervenção humana na natureza, como os «céticos» anti-ciência afirmam, mas sim na sobrestimação do nosso controlo sobre a tecnologia. O que está a avassalar a Humanidade não é a força da natureza que nos ameaça regressar ao estado de submissão que se vivia antes do iluminismo modernizador. Pelo contrário, a Modernidade sobrestimou o controlo que tem sobre a tecnologia que prometia libertar-nos do «estado de natureza» e conduzir-nos à plenitude humana. 

É necessário que a consciência ambiental abandone o racional e o razoável, e que se torne não para um irracionalismo cético, abstrato e puramente negativo, mas para um novo tipo de pensamento que não se baseia na dominação, controlo e gestão da natureza, tanto externa como humana. Contra esta forma de pensar a natureza e sociedade, construa-se um pensamento crítico que dissolve as aparências mistificadas, ossificadas e a-históricas das instituições sociais, incluindo a ciência e tecnologia.Rejeitemos o ídolo do Progresso, o progresso racional que a política ambiental «verde» propõe. Progresso aqui seria apenas a perpetuação da ruína.